O yen é um valor que passa…o Kami que se reflete na Alma do Japão não passa.

(Jorge Angel Livraga)

INTRODUÇÃO
De todas as artes criativas que compõem o criativo e colorido mosaico cultural do Japão, talvez a mais impenetrável para o ocidental seja a sua Literatura e sua singular forma de linguagem expressiva e escrita.

Pode resultar relativamente fácil aprender Ikebana, pintura aguada ou Cerimônia do Chá. Mas difícil é dominar essas mesmas artes com o Espírito que deve animá-las. E indiscutivelmente difícil é adentrar o domínio da criação literária japonesa, porque seu material constitutivo — a língua falada e escrita — é uma arte em si mesma, e de uma beleza expressiva tão simples e profunda, que exige do iniciante muitos anos de estudo.

A língua japonesa escrita é ao mesmo tempo analítica e sintética, condensada e difusa; chegou a ser considerada com uma das escritas mais abstrusas e de maior peso mental para aquele que inicia seus primeiros estudos na Literatura no País do Sol Nascente.

A dificuldade de compreensão que oferece a linguagem escrita, ainda para os que a estudam com profundidade, supõe uma barreira invencível para a apreciação direta, não apenas da sua literatura, mas também da idiossincrasia, a forma de ser do povo japonês. Foram publicadas traduções e inúmeros estudos na língua inglesa, porém em espanhol as traduções ainda são poucas. Os tênues matizes da sensibilidade japonesa estão intimamente imbuídos nos ideogramas que expressam no texto original, nos neologismos formados pela combinação de ideogramas, nas fórmulas de tratamento, nos jogos de palavras, e na sua maneira de perceber esse mundo fantástico de Kamis. Todos esses valores, que dão um sabor de existência verdadeira à mensagem literária, muitas vezes passam desapercebidos nas traduções ocidentais.

A língua japonesa. História e atualidade.

Na antiga cidade de Nara, no século VIII d. C., se desenvolveram seis Escolas de ensinamento do Budismo, baseando-se em textos hindus, sânscritos e em sutras caligrafados pelos monges e pelos letrados japoneses em língua chinesa clássica.

Um dos grandes mestres da transmissão da doutrina, Saicho,

adotou mais tarde o nome de Dengyo Daishi. Iniciado aos catorze anos na doutrina da Escola Hosso, estudou os ensinamentos dos mestres chineses, e especialmente o sutra do lótus. Em 794, fundou um monastério perto de Kioto denominado Enryaku-Ji, que se converteu no centro da Escola Tendai. Saicho, que estudou os preceitos da “palavra verdadeira”, tentou expor os ensinamentos de Buda sem deturpá-los com as suas próprias interpretações.

O célebre monge Kukai, conhecido mais tarde com o nome de Kobo Daishi, viajou pela China no início do século IX para seguir os ensinamentos da “palavra verdadeira”.

Anos mais tarde, regressou ao Japão levando consigo não só objetos sagrados mas também uma grande quantidade de conhecimentos que buscou transmitir com total fidelidade aos seus contemporâneos. No ano 816, fundou no monte Koya, ao sul de Kioto, o templo de Kongobu-Ji, que se converteu no centro da Escola Shingón, seita muito importante do Budismo esotérico, integralmente consagrada ao estudo dos textos sagrados.

A partir da escrita esotérica derivada do sânscrito, criaram-se os caracteres kana, sinais silábicos que deram origem à escrita japonesa (recordemos que ao entrar em contato com os chineses, os japoneses não possuíam ainda uma linguagem escrita).

NASCIMENTO DA ESCRITA
Com a chegada dos novos ensinamentos budistas, e as freqüentes viagens de eruditos na busca de um conhecimento mais profundo da doutrina búdica, fez-se também presente a adoção da escrita como elemento imprescindível na transmissão dos novos ensinamentos dos mestres hindus e chineses.

Os mestres japoneses, ao entrar em contato com a cultura chinesa, adotaram os caracteres chineses ideográficos, para mais tarde adaptá-los e combiná-los com a sua língua nativa. Esses signos (kanji), que oralmente são monossilábicos, semanticamente expressam conceitos globais.

Querendo simplificar o entendimento e a escrita dos kanji, chegou-se a um conjunto de caracteres que representavam una consoante e uma vogal e que constituem um silabário de 50 símbolos. Com mais uns poucos símbolos diacríticos, representaram foneticamente toda a sua linguagem falada. Era o hiragana, uma escrita cursiva com a qual se poderia escrever e expressar sua língua com caracteres especificamente nipones. Dessa forma, com a escrita dos kanji e paralelamente com os hiraganas, deu-se um enorme impulso à expressão da literatura popular japonesa, que até então se encontrava um tanto adormecida, não por inexistir seu espírito de manifestação, mas pela carência de um elemento material tangencial por que desbordar e canalizar todo esse grande mundo de percepção e idéias:a escrita.

Com o hiragana, no século VIII, já se havia desenvolvido um sistema ainda mais simplificado, que deu origem a um tipo de letra de forma mais simples e de linhas mais retas, o katakana, constituído igualmente por 50 sílabas.

Com o decorrer do tempo, essas escritas se fundiram no que se denomina genericamente kanamajiri, em que os caracteres kanji são utilizados geralmente para representar idéias, conceitos; o hiragana, por sua vez, para notas particulares; e finalmente o katakana para a escrita das palavras de origem estrangeira.

A complexidade não se detém aqui. Numerosos símbolos kanji, escritos de maneira distinta, são foneticamente equivalentes. Assim, una mesma palavra japonesa pode ter várias interpretações, e uma enorme quantidade de palavras homófonas podem ter sentidos diversos, dependendo do significado do símbolo kanji utilizado.

Dada a grande multiplicidade dos kanji, o acesso à linguagem especializada se torna particularmente difícil, o que levou aos japoneses, em muitos casos, a colocar ao lado do escrito kanamajiri sua versão em caracteres katakana, para fazer assim compreensível sua leitura e interpretação.

Para facilitar as coisas, o kanamajiri da linguagem corrente, de jornais e revistas, ficou oficialmente limitado a utilizar 1800 símbolos kanji. Supõe-se que os japoneses alfabetizados dominam pelo menos 1900 caracteres para seu uso cotidiano.

Uma língua precisa e ambígua ao mesmo tempo. Agora podemos compreender, mesmo que superficialmente, como pode a linguagem japonesa ser analítica e sintética, condensada e difusa, exata e aureolar. A realidade é que, além de ser uma das línguas mais difíceis de estudar, é também, simultaneamente, uma das mais ricas em capacidade de expressão.

Em virtude de sua herança ideográfica, a escrita japonesa contém, além de um significado preciso, uma aura de significados análogos ou distintos que lhe dá um extraordinário poder de ambigüidade e difusão semânticas.

Quando ambas características se unem em uma frase, podemos dizer algo extremamente preciso, e ao mesmo tempo sugerir una infinidade de outras coisas. Assim, corretamente traduzido, um texto japonês pode ser de uma profundidade e simplicidade exemplar e, ao mesmo tempo, constituir uma versão enganosa, pois todos os outros múltiplos significados gloriosos foram perdidos ao pretender traduzir para uma língua estrangeira o espírito da língua japonesa, como por exemplo um koan (idéia) zen, ou um clássico poema haiku.

É por essa razão que o japonês pode se estender infinitamente com uma linguagem coloquial para expressar um sentido e, por outro lado expressar toda uma situação com uma só palavra, o que para um ocidental demandaria numerosas frases detalhadas e abstrusas.

Conta-se que se por desventura o japonês cedesse ao espírito racionalista e utilitarista tão característico da cultura ocidental, abandonando o seu kanamajiri, e se restringindo a uma linguagem extremamente simples de kanas, perderia com isso não apenas sua riqueza, procedente de um tesouro tradicional milenar, mas também seu poderoso instrumento intelectual e espiritual representado pela sua inigualável língua.

Não é apenas por razão de ordem estética que os japoneses conservavam zelosamente sua língua. Talvez, por serem extremamente pragmáticos, essas duas tendências niponas se reforcem na hora de conservar uma língua escrita que, além de esteticamente valiosa, abriga elementos intelectuais ilimitados, que permitem um grau de refinamento cultural que a maioria das línguas não poderia desenvolver. Tudo isso se associa à infinita paciência de decifrar, entender e dominar no mínimo 1900 caracteres gráficos, desde a infância escolar; e saber que isso é apenas o início de um universo lingüístico exuberante e dinâmico, que tem muita relação com disciplina, paciência, constância, delicadeza. Assim como a perspicácia e adaptabilidade que o povo japonês tem para assimilar rapidamente tudo que é novo e que chega ao seu mundo circundante, essa perspicácia a caracteriza na hora de abordar qualquer tema, não apenas tecnológico, mas especialmente os relacionados ao espírito humano.

A POESIA DO SOL NASCENTE
A seguir oferecemos uma breve pincelada de uma das formas de arte tradicionais da escrita, a poesia, sutil e bela, inegavelmente arraigada na natureza e na alma religiosa do mundo japonês, que por suas conotações lingüísticas nos interessa no momento.

Uma das melhores definições do que significa a poesia para o povo japonês é encontrada nos alvores de sua literatura, no prólogo de Kokinshuu (Coleção de poesia antiga e moderna), de 905 d. C. São palavras de um de seus compiladores, Kino Tsurayuki:

A poesia japonesa tem uma semente no coração humano e cresce em inumeráveis folhas de palavras. Nesta Vida muitas coisas impressionam aos homens: eles buscam então expressar seus sentimentos por meio de imagens extraídas do que vêem ou ouvem. Quem há dentre os homens que não componha poesia ao ouvir o canto do rouxinol entre as flores, ou o croar da rã que vive na água? A poesia é aquilo que, sem esforço, move o céu e a terra e provoca compaixão em demônios e deuses invisíveis; o que faz doces os laços entre homens e mulheres; e o que pode confortar os corações de férreos guerreiros.

A poesia começou quando a vida foi criada, para animar o céu e a terra. O poeta japonês não se crê possuidor de essência diversa do resto da criação. Por sua herança cultural xintoísta e budista, sente uma profunda simpatia por todo o animado, uma compaixão universal. Por isso pode dialogar com todas as coisas deste mundo e captar a mensagem dos seres mais insignificantes. O japonês vê crescer a vida sobre um cenário animista que o faz descubrir traços de sua própria existência em cada objeto natural.

O haiku se situa no extremo oposto de toda verbosidade e ornato literário. Revela mais a emoção de um homem em um instante e nesse sentido é um estado da alma. Não é uma reflexão sobre as coisas, mas uma simples visão da realidade. Através dessa visão se podem descobrir determinados hábitos óticos e uma especial sensibilidade.

O momento estético de criação do haiku brota de uma total unidade de percepção do poeta na Natureza. Apagam-se os limites entre sujeito e objeto, entre a percepção e as palavras. Assim, a árvore de cerejeira, com sua flor que cai antes de murchar, simboliza a honra do samurai; o lótus sugere o mundo de ilusão de Amida e o pressentimento vago de existências futuras; o pinheiro faz pensar em legendários anciãos robustos e faz desejar a longevidade.

O professor Bonneau assinala que o conhecimento para o japonês é essencialmente concreto e simbólico, talvez por atavismo, tradição e educação. Como prova dessa afirmação, alega que enquanto que os gêneros literários “concretos” (novela, poesia, teatro) floresceram no Japão desde a época Nara (710-794), os gêneros “abstratos” (Filosofia, crítica, História), pelo menos no sentido comum em que entendemos essas palavras, ficaram ali como testemunhos atípicos e estrangeiros.

O haiku não aponta, pois, à beleza, mas sim ao significativo. A apreciação da beleza poderia ver-se tingida de subjetivismo e representaria um corte do cordão umbilical que estabelece a comunicação com a mãe Natureza.

CONCLUSÃO
A história, os valores, as soluções culturais niponas são a tal ponto distintas, originais e sob certos aspectos totalmente opostas à experiência da chamada cultura ocidental, que do contato com eles se suscita espontaneamente em todos os espíritos a sensação de se encontrar diante de algo enigmático, impenetrável, misterioso.

Esse é precisamente o seu encanto, o seu desafio. Na realidade, o mistério continuará enquanto não abrirmos as portas de nossa inteligência superior e de nosso coração.

No que se refere às questões humanas, a fria lógica, a razão, não basta. Ela se encontra a tal ponto comprometida com interesses, egoísmos e orgulhos que sua visão é apagada, superficial e limitada.

Necessita de algum elemento ilimitado na sua capacidade de penetrar, compreender naturezas aparentemente ilógicas e aceitar o que apareça.

A alma do Japão e da sua linguagem escrita e oral integram a capacidade que tem de se adaptar, pois em toda a sua longa e polifacetada história sempre perceberam e assimilaram o melhor de outras zonas da terra. Japão, geográfica e simbolicamente, supõe o fim de um grande começo.

Hashimoto Hidekichi

ALGUNS EXEMPLOS CLÁSSICOS DE POESIA HAIKU JAPONESA
Com ligeiros estalos

Mastiga o doce arroz

a bela mulher.

Issa.

Graças sejam dadas ao alto;

a neve sobre o cobertor

vem também de Joodo.

Issa.

Secos crisântemos;

dezessete antanho,

minha oferenda floral.

Onitsura.

Arrastando suas densas

sombras,

brincam os lagartos.

Kyoshi.

Autor

Revista Esfinge