Ciência sem consciência é a ruína da alma. (Rabelais)

Nas últimas décadas, e mais concretamente desde a metade do século XX, pode-se constatar uma aceleração dos processos vitais por que passam habitualmente os seres humanos. Tendo em vista a situação mundial, pode-se dizer que nos últimos cinqüenta anos assistimos no campo da ciência a uma etapa de esplendor, baseada na obtenção de uma série de criações e descobrimentos de primeira magnitude, uma força tecnológica sem precedentes, uma melhor racionalização dos processos industriais, uma maior eficiência na exploração dos recursos disponíveis, uma sensível melhora no intercâmbio de informação entre os países e as pessoas, e uma maior mudança por parte das empresas e dos governos em I+D (Investigação e Desenvolvimento, à qual se somou ultimamente a inovação, para se denominar I+D+I).

Em suma, não apenas existe uma maior tecnologia de ponta, mas existe um melhor acesso das pessoas aos conhecimentos, o que eliminou muitas barreiras antigas e fronteiras psicológicas, devido a uma melhor divulgação e acesso à ciência, algo sem precedentes desde a época de Copérnico e Galileu…

No entanto, valorizando as obtenções na sua justa medida — e não em excesso — a dita globalização do conhecimento encobre uma terrível dualidade entre os países desenvolvidos e “os outros países”, aqueles que se encontram “em improváveis vias de desenvolvimento”. À luz das estatísticas se detecta um fenômeno de desaceleração dos processos e das vivências humanas quando contemplamos a realidade mundial como um todo — mais além de uma mentalidade de primeiro mundo —, aproximando-nos ao que denominamos “a revolução inversa”, que passamos a detalhar.

Os dados que se aportam a seguir, oferecidos atualmente na exposição “A Terra vista do ar” na Praça do Comércio de Lisboa, são um resumo das obtenções e contradições alcançadas nos últimos 50 anos, por si mesmos suficientemente eloqüentes:

– População: “nos últimos 50 anos, a população do planeta triplicou, embora o consumo de água tenha-se multiplicado por 6, principalmente devido ao consumo agrícola”, isto é, não foi motivado por melhorias no abastecimento humano. Na atualidade “a população mundial aumenta para mais de 1 milhão de pessoas por semana”, sendo que há um paradoxo: “40 milhões de pessoas morrem de fome por ano num mundo que produz 356Kg de cereais por pessoa”.

– Acesso à água: é significativo descrever que “80 países, isto é, 40% da população mundial, sofrem pela escassez de água”, alcançando a cifra de “20% da população não dispõem de água potável”. “A água insalubre provoca 5 milhões de mortes por ano”, ou seja, “mais de 1 bilhão de pessoas não dispõem de mínimas condições de vida”.

– Países industrializados e países em desenvolvimento: um quinto (1/5) da população vive em países industrializados, produzindo, consumindo e contaminando em excesso, destruindo árvores e degradando o meio ambiente, enquanto quatro quintos (4/5) vivem em países em vias de desenvolvimento, ou seja, na pobreza. É significativo que “50% da população vive com menos de 2 dólares diários”. É notório indicar que “90% dos habitantes deste planeta nunca utilizaram um telefone”. De fato, atualmente, “600 milhões de pessoas no mundo vivem em favelas nas periferias das grandes cidades”. Como exemplo do efeito que tem a industrialização sobre o ecossistema se pode citar que “para fabricar um computador são necessárias de 8 a 14 toneladas de matérias-primas não recicláveis”.

– Acesso à higiene: “40% da população não dispõem de instalações sanitárias”. Por exemplo, “a cada ano, 500.000 crianças ficam cegas por falta de vitamina A”. Em âmbito mundial “1 em cada 3 crianças com menos de cinco anos sofre desnutrição”, em contrapartida, nos países desenvolvidos “entre 10% e 30% das crianças sofrem de obesidade”. No total, “826 milhões de pessoas sofrem desnutrição no mundo”.

– Acesso à educação: “no mundo, 1 em cada 5 adultos não sabem ler ou escrever”, “e destes, 80% vivem nos países em vias de desenvolvimento, e 2/3 são mulheres”.

– Situação da infância: em nível mundial “1 em cada 5 crianças não vai à escola”, entre outras causas, porque “mais de 300.000 meninos e meninas são soldados (muitos têm menos de 10 anos)”. Como exemplo citaremos o caso do Quênia, “onde 30% dos trabalhadores das plantações de café são crianças”.

– Agricultura: é o meio de vida de milhões de seres, ainda que seu desenvolvimento cada vez demande um maior consumo de recursos disponíveis. Nos últimos 50 anos “40% da terra cultivável do mundo foi degradada pelo cultivo intensivo”, e na atualidade “70% da

água doce é usada para regar a terra cultivada”. Enquanto “o uso de pesticidas provoca a morte de 20.000 agricultores por ano”, por outro lado, “80% dos agricultores do mundo não precisam modificar seus métodos de produção para obter as certificações porque acreditam que seus produtos são totalmente orgânicos”, pois mantêm técnicas tradicionais alheias à técnica moderna.

– Produtividade econômica: “a produção econômica nos últimos 50 anos se multiplicou por 7, embora a produção de peixe apenas se tenha multiplicado por 2, e a de carne por 5″.

– Produção energética: em determinado período “a geração de energia apenas se multiplicou por 5″, embora 20% das pessoas — obviamente as que vivem nos países mais ricos — consumam até 60% da produção total de energia elétrica”. Basta dizer que “40% da população mundial não têm eletricidade”.

– Consumo de petróleo: “o consumo de petróleo se multiplicou por 7″, a quantidade de petróleo consumida atualmente em 6 semanas possibilitaria em 1950 a totalidade do transporte mundial para 1 ano”. Isso acarretou que “as emissões de dióxido de carbono (CO2) na atmosfera também se multiplicaram por 7″. Sendo estas, além do mais, “as responsáveis por 60% do aumento do efeito estufa do planeta”, que “provocou, entre 1960 e 1990, uma diminuição da espessura da geleiras estimada em 44%”. Na atualidade “mais da metade dos recifes de corais estão ameaçados”.

– Ajuda pública ao desenvolvimento: “a indústria alimentícia gasta 40 bilhões de dólares em publicidade”, por outro lado “a ajuda pública ao desenvolvimento totaliza 58 bilhões de dólares”. “Nos últimos anos, as ajudas públicas ao desenvolvimento derivaram 29% no mundo”.

– Conflitos bélicos e gasto militar: “o total de gastos militares no mundo chega aos 794 bilhões de dólares”. Isso acarreta que “a cada ano morram entre 15 e 20 milhões de pessoas devido a minas anti-pessoas”. Pode-se afirmar que “1 em cada 120 habitantes do planeta é um refugiado”.

Resumindo, antes de 2050 a terra terá mais de 3 bilhões de habitantes que viverão em países em vias de desenvolvimento. Se realmente conseguissem se desenvolver, entrariam em choque com os interesses dos países desenvolvidos, alterando-se o ecossistema da Terra.

Urge, portanto, aplicar um desenvolvimento sustentável, que atente para a utilização dos recursos disponíveis no planeta, que melhore sua redistribuição, e propicie o acesso ao bem-estar dos países em vias de desenvolvimento. Mas tudo isso não ocorrerá sem uma mudança de mentalidade, uma reprogramação dos hábitos e condutas dos países mais desenvolvidos.

A perda de mínimas condições de vida, de salubridade, de condições de higiene e educação, deve fazer que o primeiro mundo reflita que a revolução científica conta na sua condução também com esta tácita involução, com estas falhas na aplicação prática das técnicas e dos conhecimentos. Esta revolução na qual crescem exponencialmente as carências, a ausência de condições mínimas, é a que chamamos “a revolução inversa”, é uma revolução órfã de horizontes claros, de princípios, que denota que nosso mundo está carente de ideais, de diretrizes globais, sobre a qual os políticos, os técnicos e os científicos têm muito o que dizer. Nossa crítica não pretende ser destrutiva, mas sim uma chamada à reflexão e ao compromisso leal com a humanidade… Há que colocar mãos à obra, pois o relógio do destino não se detém jamais e se escreve com ações esforçadas mais do que com palavras vãs… Talvez a ciência, se souber recordar a tempo seus nobres ideais, tenha em suas mãos os instrumentos para suturar a sangria de uma revolução inversa que outros interesses não sabem ou não querem promover.

Raysan

Autor

Revista Esfinge