Escrito por José Manuel Escobero

Introdução

Aproximar-se da arte rupestre implica entender que a mentalidade de seus autores será, com total certeza, radicalmente diferente da nossa quanto à concepção do mundo. No entanto, visto que as grandes perguntas da humanidade são as mesmas (quem sou, qual é a origem da consciência, existe a transcendência além da morte), e que o fundo simbólico da mentalidade humana é bastante similar, podemos tentar uma aproximação à denominada “Arte Rupestre” norte-americana; em especial, a encontrada próxima da região dos cânions que rodeiam os Quatro Cantos (Four Corners)1.

Os especialistas falam de uma certa unidade pictórica nessa região, onde se identificam duas grandes áreas de influência, os anasazis (mais politicamente correto, denominados “povos ancestrais”) e a enigmática cultura Fremont. Os povos ancestrais se incorporaram aos povos atuais (zuni, Hopi e comunidades do Rio Grande2), e os Fremont, simplesmente, dissiparam-se. Geograficamente, essa área se caracteriza pela presença de cânions, um clima árido, desértico ou subdesértico continental, e temperaturas extremas que incluem nevascas volumosas no inverno e um calor debilitante no verão. Esse é o cenário onde se desenvolveu uma arte sobre a rocha muito específica, em um isolamento quase total com outras culturas.

Um pouco de história

Como quase tudo no norte da América, as primeiras referências de ocidentais sobre esse território são as de espanhóis. Francisco Vázquez de Coronado (1510-1554) explorou a área em 1540; Juan de Oñate y Salazar (1550-1626) em 1599: e a expedição de Domínguez-Escalante em 1776. Durante todo o século XIX existem referências da citada arte, a qual não se atribui valor e a qual não se teve escrúpulos em acrescentar na rocha a assinatura daqueles que a admiravam, como um irreverente grafite moderno. É somente na década de 20 do século passado que esses vestígios artísticos começam a ser considerados como dignos de estudo e a serem investigados e, acima de tudo, protegidos. 

O que é a arte rupestre (Rock Art)

Um petróglifo, ou simplesmente “glifo”, é a imagem realizada mediante incisão em uma superfície rochosa. Também encontramos entre esses povos pictogramas, ou seja, “escritas” na rocha, feitas com diferentes matizes e cores. Nesse caso, não devem ser incluídos como pictogramas os numerosos vestígios encontrados no interior ou exterior de edifícios, sejam eles casas ou kivas (templos Pueblos), feitos sempre em gesso. Às vezes, os pictogramas e os petróglifos coincidem, mas isso é extremamente raro.

Claro, chamá-la de arte rupestre inclui o perigo de considerar esses raros vestígios arqueológicos como vinculados ao conceito de arte que hoje nos acompanha. Nada mais distante da realidade, porque tanto seu uso como sua expressão não a colocam como uma expressão estética para ser mais ou menos compartilhada, embora esse significado também esteja presente nela; nem segue um aparente padrão de estilo, nem era utilizada para embelezar ou simplesmente preencher um buraco.

Material de expressão

Por que sobre rocha? Talvez houve expressões desta arte em pele ou madeira, mas nada não foi conservado. A rocha é dominante nesse território, e oferece uma base uniforme e acessível para realizar a expressão da arte rupestre. Além disso, existem numerosas e sólidas provas de que houve a intenção de perpetuação dessa “arte”, através do uso repetido, nem casual nem única: “a durabilidade parecia ser um fator, e a criação de imagens em rocha contribui para essa durabilidade”3. Os grandes painéis onde se sobrepõem figuras e cenas de diferentes estilos e épocas não são raros, muito pelo contrário. Às vezes, um mesmo painel mostra petróglifos cuja diferença temporal é de mais de mil anos.

É verdade que as inovações pictóricas sobre materiais semipermanentes ou sobre pele humana (tatuagens) existiram em outras culturas nativas, mas o isolamento referido desse território fez com que, aparentemente, não estivessem presentes em Pueblos ou Fremonts.

Além disso, obviamente, a rocha é abundante nesse país. No entanto, facilmente se esquece que a rocha exposta é realmente rara na maior parte da América do Norte, ao menos na área habitável, ou seja, entre os picos nevados e os desertos. Nessa faixa, é onde se encontra o coração do território revestido com essa expressão rupestre, onde os arenitos tendem a se formar, por suas propriedades geológicas, superfícies verticais em falésias e cânions, muito numerosos, e esses extratos tendem a acumular os minerais necessários para a formação de uma película bioquímica sem a qual a arte rupestre seria impossível: o verniz do deserto (desert varnish).

Desert varnish

O verniz do deserto é uma cobertura escura, de tons avermelhados a violeta quase negro, que se desenvolve sobre as superfícies de arenito. Composto por elementos metálicos como o manganês, principalmente, mas também óxidos de ferro e outros hidratos minerais, que a fina película microbiana que reveste essas superfícies acumula com o passar dos anos. É preciso, para isso, uma rocha adequada, mineralização, um pouco de umidade, ar e luz, em um processo que ainda não é bem conhecido. Esse fenômeno está limitado a áreas áridas ou semiáridas com um padrão de exposição solar, temperatura e, acima de tudo, concentração de vapor de água de limites exageradamente exigentes. Por isso, não ocorre o revestimento de verniz em qualquer pedra.

Sobre esse verniz, raspando com outra rocha e às vezes com um simples bastão, pode se revelar a cor real da rocha subjacente, e a silhueta fica perfeitamente definida em um tom mais claro. É semelhante à técnica de pintar totalmente uma superfície, um papel, por exemplo, com cera, e depois aplicar outra cor sobre ela. Se riscamos a camada externa, fica a superfície interna, que é a que serve para delinear.

Ainda assim, não foi encontrado um padrão para definir que lugar com essas rochas é adequado para representar essa arte. Existe o paradoxo de locais sem população conhecida ao longo dos anos onde se aglomeram os vestígios de glifos, e povoados de longa história sem nenhum tipo de arte rupestre.  Foram realizados estudos de distribuição levando em consideração numerosos fatores que incluem a presença de água, rochas, cânions, altitude… sem nenhum êxito. Por que pintaram e esculpiram onde o fizeram, continua sendo um mistério.

Autor

Revista Esfinge