Khalil Gibran e Mayy Zidayeh

“Senhora Falcão” no século XX

Não sou daqueles que encontram momentos desocupados em seus dias e suas noites, e os enchem de passatempos amorosos, nem daqueles que minimizam os segredos de seus espíritos e os mistérios de seus corações, e os espalham ante qualquer vento que sopra. Preocupo-me muito, como todos os homens que têm muitas preocupações. Anseio o grande, o nobre, o belo, o puro…

Carta de Gibran à Mayy, 1923

Poeta libanês falecido em 1931 e mundialmente conhecido por seu livro “O Profeta”. Queremos prestar uma homenagem ao amor que presidiu sua vida, e que recorda de algum modo uma bela lenda transmitida pelo cinema em 1985. Dirigida por Richard Donner e protagonizada por Michelle Pfeiffer, “Senhora Falcão” ou “O feitiço de Áquila” conta a história de um casal paixonado, vítimas de um feitiço e condenados a nunca mais se verem: ela, transformada em falcão durante o dia, acompanha de maneira inseparável o cavalheiro, mas ao chegar a noite, ele se transforma em lobo, justo quando a dama recupera sua aparência feminina.

Algo semelhante ocorreu com Khalil Gibran e Mayy Ziyadeh. Quando Gibran publica em 1912 seu romance “Asas Partidas”, Mayy lhe envia uma primeira carta, contando sua admiração pelo livro. Ele se apressa em responder e assim se inicia uma correspondência que durou quase 20 anos, até o final da vida do poeta.

O fato de eles nunca terem se encontrado é algo que nos chama a atenção, e nos leva a pensar que a distância da amada foi o fogo que alimentou constantemente a obra universal do artista, dando lugar as suas melhores criações. Como ele próprio afirma em uma de suas cartas: O amigo ausente pode estar mais próximo do que o amigo presente. A colina não é mais impressionante e de mais clara aparência para aquele que marcha pela planície do que para aquele que vive nela?

Ele, o Lobo. Deixou sua pátria pela última vez em 1903, (como ele desejou a volta!), mas as circunstâncias, sempre à espreita, obrigaram-no a permanecer nos Estados Unidos. E, apesar de ter dedicado grandes esforços à revitalização da cultura árabe, Gibran se considerou consagrado à causa da Humanidade, e une a sua magnífica personalidade de escritor, com a de pintor e desenhista, deixando refletida na sua obra todo o encanto do Oriente e do Ocidente, com traços românticos e clássicos, eminentemente simbólicos e idealistas.

Entre suas obras mais conhecidas se destacam “O profeta”, “O jardim do profeta”, “O louco”, “A Procissão”, “As ninfas dos vales”, “Areia e espuma”, etc. Ela, o Falcão. Nascida na cidade de Nazareth, de aguda inteligência, com inclinação à ciência e com grande memória, falava pouco devido a sua tendência natural à reflexão.

Quando sua família se mudou ao Egito já conhecia vários idiomas e em 1911 ingressou na Universidade do Cairo, sendo a primeira mulher árabe da Faculdade de Letras. Além de ter sido famosa como oradora em diversas capitais árabes, assim como por suas salas literárias: durante aproximadamente quinze anos, todas as terças-feiras à tarde, abriu sua casa para receber escritores e poetas, pois o fato de conhecer perfeitamente cinco idiomas lhe permitia ser anfitriã de uma grande quantidade de personalidades, tanto árabes como estrangeiras.

Por que não chegaram a se encontrar? Em uma época na qual quase a totalidade das mulheres árabes viviam veladas, com exceção de uma minoria, ela, Mayy Ziyadeh, a jornalista liberal, a ousada escritora e oradora, viveu prisioneira da educação conservadora de então, que censurava o fato de uma jovem declarar seus sentimentos. E ainda quando Gibran lhe revela em suas cartas o belo e puro sentimento que sente por ela, sua alma feminina oscila entre avançar e retroceder, sem poder se livrar das correntes que lhe atam.

As cartas

O conjunto das cartas que o poeta escreveu à mulher que amou, e que ela se atreveu a publicar após sua morte, constitui uma maravilhosa literatura epistolar que nos revela um Gibran íntimo e sincero. Também nos faz sentir saudade dessa prática tranqüila e quase perdida da “velha arte de escrever cartas”, nas quais – frente à superficialidade das comunicações atuais – tinha cabida a expressão da alma, já que na distância trata-se de evitar o vulgar para aproximar-se do melhor de si mesmo.

11 de junho de 1919

Minha querida senhorita Mayy:

Volto de uma prolongada viagem ao campo e estou com suas três cartas. Deixei tudo que estava me esperando neste escritório, para passar o dia atento as suas palavras…

(No entanto, a linguagem escrita dificulta às vezes o entendimento entre ambos) (…) Amiga minha, coloquemos nossas diferenças – a maioria das quais são verbais – num Cofre de Ouro, e lancemo-las ao Mar dos Sorrisos. Se já há sete mil milhas que nos separam, não acrescentemos nem um palmo a mais a esta enorme distância, melhor: tentemos encurtá-la através do anseio da fonte e da sede de eternidade. (…) Quando comentas sobre os desenhos do meu livro, como podes dizer: “Vocês, os artistas…”? Tu, Mayy, és uma de nós e estás entre nós. Tu te encontras entre os filhos e filhas da arte, como a flor está entre as folhas. Do contrário, diz-me, Mayy, diz-me como aprendestes tudo que sabes, e em que mundo se reuniram esses tesouros da tua alma, em que época viveu teu espírito antes de chegar ao Líbano. No espírito há um segredo mais profundo que o da vida…

25 de julho de 1919

Desde que te escrevi até agora, a tive presente comigo. Passei longas horas pensando em ti, falando contigo, interrogando teus mistérios e me informando sobre teus segredos. E é assombroso o fato de, freqüentemente, eu sentir a presença da tua essência etérea neste escritório espiando meus movimentos, dirigindo-se a mim, rodeando-me, manifestando sua opinião sobre minha conduta e meus atos.

Uma vez me dissestes: “Entre as mentes não se dá uma conversação e não se produz um intercâmbio entre as idéias, que a apreensão sensorial não possa efetuar?”.

Ultimamente, tem sido evidente para mim a existência de um vínculo intelectual sutil, vigoroso, diferente, cuja natureza e influência diferem das de qualquer outro, pois é mais intenso, sólido e permanente; não comparável aos laços de sangue, biológicos ou morais. Nem um só dos fios deste laço está tecido pelos dias e noites que passam entre o berço e o sepulcro, pois entre duas pessoas pode acontecer o que nem o passado nem o presente fizeram e que quiçá nem o futuro fará.

Neste vínculo, Mayy, a alma guarda um oculto entendimento mútuo, algo como uma profunda canção tranqüila que ouvimos na calmaria da noite e que nos traslada para além do dia, do tempo, da eternidade…

9 de novembro de 1919

Passei os meses de verão em uma casa isolada, erguida como um sonho entre o mar e o bosque…

(…) Eu ouvi, desde o mar e pela primeira vez, a conversação do Tempo, quando eu tinha oito anos e ficava perplexo comigo mesmo. Então, revestia-me da minha vida e começava a enfrentar a paciência da minha falecida mãe com minhas muitas perguntas. Essa é a voz que escuto hoje, perguntando as mesmas coisas, mas à Mãe total, que me responde sem palavras e me faz compreender coisas que, cada vez que tentei manifestá-las aos demais, transformavam-se em profundo silêncio ao ser proferidas pela minha boca. Hoje, estou sentado à beira-mar, olhando o ponto mais distante do horizonte azul e fazendo igualmente mil e uma perguntas. Haverá alguém nesta terra que as responda? Abrir-se-ão as portas do tempo, ainda que seja apenas por um segundo, para que vejamos os segredos e enigmas que existem por detrás delas?…

28 de janeiro de 1920

Permita-me dizer-lhe, novamente, que eu odeio a ironia, sutil ou não, entre amigos, e a hipocrisia e a falsidade em todas as coisas, e odeio porque vejo nisso as conseqüências da civilização das máquinas, que anda sobre rodas porque está sem asas…

(…) No entanto tu, Mayy, és uma das filhas da nova manhã. Por que não despertas os adormecidos? A garota dotada ocupou e ocupará o posto de mil homens capacitados. Não duvido de que se chamas essas almas perdidas, perplexas e escravizadas, com a força da constância despertará nelas a vida, a determinação, o desejo de subir a montanha. Faça isso e confie no fato de que quem alimenta com azeite uma lâmpada enche a casa de luz…

21 de maio de 1921

(…) Tu, Mayy, és um dos tesouros da vida e, agradeço a Deus o fato de que sejas de uma nação a qual eu pertenço, e vivas num tempo no qual eu vivo. Cada vez que te imagino vivendo no século passado ou no futuro, ergo minha mão e a agito no ar, como querendo dissipar uma nuvem de fumaça diante do meu rosto…

5 de outubro de 1923

Não, Mayy, não temos que nos censurar, mas sim nos entender. E isso não é possível se não falamos com a simplicidade das crianças. Tu e eu sabemos que amizade e “redação” não concordam facilmente. O coração, Mayy, é simples, e as manifestações do coração são elementos simples. Mas escrever é um composto social, o que dirias se deixamos a “redação” por uma palavra simples?

“Vives em mim e eu vivo em ti; sabes disso, e eu o sei”.

O que nos impedia de pronunciar estas palavras no ano passado? A vergonha, o orgulho, os convencionalismos ou o quê? Desde o princípio sabíamos esta verdade básica, por quê, então, não a manifestamos com a sinceridade dos crentes autênticos e livres? (…) Digo, Mayy, e te afirmo ante o céu e a terra e o que há entre ambos, que não sou daqueles que encontram momentos desocupados em seus dias e suas noites, e os enchem de passatempos amorosos, nem daqueles que minimizam os segredos dos seus espíritos e os mistérios de seus corações, e os espalham ante qualquer vento que sopra. Preocupo-me muito, como todos os homens que têm muitas preocupações. Anseio o grande, o nobre, o belo, o puro, como alguns homens, e sou um estranho solitário e selvagem como outros, apesar de meus setenta mil amigos e amigas. Como alguns homens também, não me inclino por essas acrobacias sexuais conhecidas pelas pessoas com bons nomes e epítetos ainda melhores. Eu, Mayy, como teu próximo, amo Deus, a vida, as pessoas, sem que até agora, os dias tenham exigido que eu desempenhe um papel inadequado aos nossos semelhantes.

Mas te escrevi e me respondeste receosa… Ai, se soubesses quão cansado estou do inecessário! Se soubesses o quanto necessito da simplicidade! Se soubesses a nostalgia de absoluto que sinto, de um absoluto branco, do absoluto na tempestade, do absoluto sobre a cruz, do absoluto que chora sem verter suas lágrimas, que ri sem se envergonhar do seu riso! Se soubesses, se soubesses!…

8 de Outubro de 1923

(A carta contém duas fotografias, escritas no anverso).

Diga-me, já vistes em tua vida dois rostos mais belos do que estes? Eu acredito que são a mais elevada manifestação da arte grega, quando a arte grega estava no ápice. Sempre que visito Washington, vou ao Museu e me encaminho diretamente à Sala Grega. Sento-me um pouco diante dos dois rostos, e logo saio sem olhar nem para a direita nem para a esquerda, para não perturbar a visão desta beleza sagrada com outra.

Deus faça feliz a manhã do doce e belo rosto.

Em 10 de abril de 1931, tão-somente duas semanas antes da partida definitiva de Gibran ao Absoluto que almejava, o correio entregou em mãos de Mayy uma última carta contendo um desenho e uma simples dedicatória: À Mayy, de Gibran, afirmando-lhe que essa chama azul de ambos jamais se apagaria.

Na segurança de que sua luz ilumina desde então milhares de corações, extraímos de um de seus maravilhosos livros as palavras do próprio Gibran, que trazem às nossas consciências lembranças do futuro:

Vim dizer uma palabra e a direi agora. E, se a morte se opõe, será pronunciada pelo Amanhã, porque o Amanhã nunca deixa um segredo no livro da Eternidade.

Vim viver na glória do Amor e à luz da Beleza, reflexos de Deus. Aqui estou, vivo, e não hei de ser destronado do domínio da vida, porque através da minha palavra vivente viverei na morte.

Vim aqui para ser de todos e estar junto de todos, e o que faça hoje na minha solidão repercutirá amanhã nos ecos da multidão.

O que digo agora com um só coração será repetido amanhã por milhares de corações.

Bibliografia

Obras completas de Khalil Gibran. Edicomunicação S.A., Barcelona

Obras Seletas, Gibran. Ed. Mateos

Cartas de amor. Kahlil Gibran. Edições de Bronze

Chama Azul. Cartas inéditas à Mayy Ziyadeh. Instituto Hispano-Árabe de Cultura. Madri.

Mª Teresa Cubas

Autor

Revista Esfinge