Mozart nasceu em Salzburgo em 1756. Foi o último de uma família de sete crianças. Seu pai era músico e compositor, desde cedo notou o talento de Wolfgang e não perdeu tempo ao dar-lhe as primeiras aulas de cravo aos quatro anos. Aos seis anos de idade, já compunha. Toda a sua infância pode ser traduzida em música: em seus jogos e em suas emoções. A sua irmã também era excelente em música, de modo que seu pai, orgulhoso de seus dois filhos, decidiu fazer com que toda a Europa os conhecesse e, para tal, empreendeu longas viagens com eles. Esta vida ambulante, juntamente com as difíceis condições de transporte da época, revelou-se prejudicial para a já frágil saúde de Wolfgang. Com efeito, ao longo de toda a sua vida viu-se afetado por várias doenças. Outro aspecto da infância deste gênio foi o de não ter tido a oportunidade de conviver com outras crianças de sua idade pelo fato de ter entrado prematuramente em contato com o mundo das grandes personalidades. Quando adulto, teve poucos amigos e quase ninguém com quem compartilhar as idéias profundas. Nem sequer sua esposa pôde compreender o seu gênio.

Viajou, sobretudo pela Áustria, Alemanha, Bélgica, França, Inglaterra e Itália. Os contatos com esses povos dilataram consideravelmente a sua cultura geral. Sua música ultrapassou as fronteiras nacionais e as limitações que estas pressupõem: não sendo italiana, nem alemã, nem francesa, isto explica a extraordinária universalidade de Mozart.

Em 1783 conheceu o compositor Haydn que chegou a ser seu professor, para mais tarde converter-se em seu discípulo. Tornaram-se amigos e dedicaram obras um ao outro. Haydn, músico muito conhecido em vida, afirmou: “Mozart é o maior compositor que existe atualmente no mundo”.

Em 1784 Mozart entrou para a loja Maçônica de Viena. Este contato exerceu uma profunda influência em sua vida e obra. Morreu em 1791.

O homem

Wolfgang Amadeus Mozart possuía o sentido mais delicado da poesia lírica, assim como do drama. Sem dúvida alguma leu muito: a sua Biblioteca continha livros de viagens, de história e de filosofia. Apaixonado pelas matemáticas, rabiscava quando criança as paredes e as mesas com números. Especialmente dotado para as línguas conhecia o inglês, o italiano, o alemão e o latim dos textos litúrgicos. Também apreciava os passeios a cavalo, a esgrima, o bilhar e a dança. Amava os pássaros: durante três anos teve um estorninho ao qual ensinara a cantar os primeiros compassos do tema de um dos seus concertos para piano.

Seu caráter, sua natureza.

Alegre por natureza, Mozart adorava as diversões. Amava as coisas da vida, mas sem se prender demasiado a elas. Era incapaz de conceber o mal. Não existe pieguice em sua música nem qualquer elemento vulgar. Nunca se apiedou de si próprio apesar das inúmeras provas pelas quais passou. Discreto, seu gênio não se revelava em profundidade mais que em sua música. Possuía um grande amor e respeito pelos demais. Amante da verdade estava à espreita de tudo aquilo que pudesse aprender, numa constante procura em aumentar a sua compreensão.

Mostrava-se implacável para com todas as formas de opressão. Não suportava ser tratado como um criado. Na sua época, o desprezo dos aristocratas pelos intelectuais e artistas era corrente. Ele reivindicava a independência total do artista, ainda que isso pudesse conduzi-lo à miséria. Inclinava-se perante a verdadeira grandeza e ignorava sempre a baixeza moral e a inveja. Acolhia e protegia os jovens músicos. Quando se deparava com alguém que se mostrasse sensível a sua arte tocava para ele durante horas, mesmo que se tratasse do homem mais insignificante ou desconhecido.

Era um homem de fé. A sua ligação à maçonaria não estava em contradição com a sua prática religiosa.

“O verdadeiro gênio sem coração é um contra-senso, porque nem a elevada inteligência, nem a imaginação, nem ambas em conjunto fazem o gênio. Amor! Amor! Amor! Eis aqui a alma do gênio”.

O compositor

“A idéia cresce cada vez mais e eu a desenvolvo, a explico; a obra está quase pronta na minha mente, mesmo se é vasta, de modo que, depois, abraço-a no meu espírito com um só olhar, como um quadro formoso e escuto-a na minha imaginação, não na sucessão em que deverá aparecer, mas de um só golpe, na sua totalidade. Que festim! Todo o trabalho de imaginação e de elaboração realiza-se em mim como num sonho profundo e belo, cujo melhor aspecto é esse gênero de visão global”. (Mozart)

O “divino Mozart” deixou uma aura de mistério à volta de sua pessoa. A sua precocidade, a sua rapidez de escrita, a perfeição da sua harmonia, que nunca choca, e ainda outros tantos pontos de interrogação. Parecia desafiado pela necessidade de produzir, como se pressentisse a brevidade da sua existência.

Embora tenha escrito por encomenda e por necessidade material, Mozart abordou com êxito todo o gênero de obras com especial destaque para a ópera, a voz foi seu instrumento predileto. O número das suas obras é prodigioso (mais de 600), embora difícil de determinar com exatidão, devido às partituras perdidas e às dúvidas referentes à autenticidade de certas páginas do seu catálogo.

O pedagogo

Numa carta de 17 de Fevereiro de 1778, Mozart fala do ensino nos seguintes termos:

“É um tipo de trabalho para o qual não me sinto inclinado… Dou de bom grado as minhas lições porque isso me agrada, sobretudo quando vejo alguém com gênio, alegria e vontade de aprender. Mas ser obrigado a ir em horas regulares a outra casa, ou esperar na minha, sou incapaz, ainda que ganhe dinheiro com isso. Deixo isto para as pessoas que não sabem senão tocar piano. Sou um compositor, nascido para ser diretor do corpo de músicos de uma igreja; não devo nem posso enterrar assim o talento de compositor que Deus, na sua benevolência, me dotou (digo-o sem presunção, pois estou mais do que nunca consciente disso); não obstante, seria isso que aconteceria se tivesse muitos alunos”.

Mozart preparou livros de exercícios para os seus discípulos. Escreveu peças concebidas com uma finalidade didática. Os seus alunos mencionam a desordem que reinava nos seus papéis e nas suas notas. Por vezes tinha de voltar a transcrever de memória as suas composições porque não encontrava os originais. Era-lhe mais fastidioso procurá-las do que voltar a escrevê-las! As partituras estavam espalhadas por toda a casa; os plagiadores poderiam, eventualmente, servir-se delas e talvez não se tenham privado de fazê-lo. Um número razoável de partituras escritas pela sua própria mão foram extraviadas. Quanto a Mozart, chegou a esquecer-se de que era o autor das suas próprias criações!

Sua concepção da música

Numa época em que a profissão artística era mal vista, Mozart reivindicou o respeito pela música, obrigando a que se lhe fizesse justiça. Compor era sua vocação. Tinha uma profunda consciência da sua missão de compositor. A música era o sentido da sua vida. O essencial é a mensagem que se transmite através da arte. Das suas composições depreende-se um sentido sagrado da inocência e da moralidade. Conduz o ouvinte a prestar culto simultaneamente à arte e à virtude.

Sua concepção da vida e da morte

Mozart amava as coisas agradáveis da vida, embora sem chegar a excessos. Conheceu os prazeres físicos e materiais sem se apegar a eles, pois compreendera que esta era uma via sem saída.

A morte não é um evento angustiante, é o desenlace natural da vida. Para o compositor, nada tinha de espantoso. A morte constitui o mistério central da sua obra e de sua vida. Tinha certeza de que se tratava de uma passagem para uma vida melhor. As suas grandes partituras líricas exprimem a morte como uma transformação da vida perecível em vida verdadeira. A luz que está mais além desempenha um grande papel nas suas composições líricas.

A morte está presente em toda a sua obra, mas não é tratada como um drama. Sua filiação na Maçonaria ajudara-o a enfrentar esta prova comum a todos os seres. A sua fé na imortalidade permitia-lhe caminhar para a morte como “para a melhor e mais sincera amiga”.

Eis aqui o que Mozart exprime a este respeito numa carta dirigida a seu pai em 1786. Tinha então 30 anos.

“Como a morte é a verdadeira finalidade da nossa vida, faz alguns anos que me familiarizei de tal modo com esta autêntica e excelente amiga do homem, seu rosto não só nada tem de terrível para mim, mas, pelo contrário, revela-se muito apaziguador e muito consolador. E eu agradeço a Deus ter-me dado a felicidade de aproveitar a ocasião (alusão à Maçonaria) de aprender a conhecê-la como a chave de nossa verdadeira felicidade.

Nunca vou para a cama sem antes refletir que amanhã (mesmo tão jovem como sou) poderei já não estar mais aqui… E, não obstante, ninguém entre todos que me conhecem, poderá dizer que sou pesado ou triste nas minhas conversas… Eu agradeço todos os dias ao meu Criador por esta felicidade e desejo-a cordialmente a cada um dos meus semelhantes”.

O gênio de Mozart reside especialmente na universalidade da sua música: esta traz felicidade aos enamorados dando elegância e sutileza, assim como às almas para as quais a inspiração e a arte não estão separadas das mais altas interrogações da vida. Os povos chamados “primitivos”, ao ouvirem as harmonias de Mozart reconhecem nelas uma música mágica, sagrada, sendo graças a este fato que se tornam possíveis os contatos entre mentalidades tão diferentes.

Tanto a infância como a velhice são particularmente tocadas por esta música emergente de um jovem homem cuja obra é de uma maturidade de espírito que ultrapassa amplamente sua idade física.

Tal como a maioria dos gênios, Mozart não escapou à crítica, à injustiça e à incompreensão dos homens. No entanto, há que prestar-lhe homenagem pelo exemplo de artista-filósofo que nos deixou: soube viver plenamente a sua existência, acomodando cada coisa no lugar mais conveniente. Não terá esta harmonia do homem interno transparecido na sua música sublime para que fosse denominada “divina”?

Pode ser que este apelo à perfeição faça vibrar de igual modo a criança, ao ancião, ao “homem primitivo” e ao “homem civilizado”.

Claude Pardón

Convite à música – Feliz aniversário, mestre.

No ano de 2006, em 27 de janeiro comemorou-se o aniversário de Wolfgang Amadeus Mozart; 250 anos para ser exato. E a primeira coisa que me vem em mente é o conhecido e próximo que é sua música, e o distante que subsiste no tempo o acontecido naquele ano de 1756. O enciclopedismo estava nascendo, havia estourado a guerra dos sete anos da Rússia, Áustria e França contra a Prússia, Inglaterra e Suécia, era o tempo do contrato social de Rousseau, da máquina a vapor e das viagens do capitão James Cook; havia passado somente seis anos que Juan Sebastián Bach havia morrido e faltavam três para que Haendel deixasse de existir.

Na verdade, ainda que tudo isso soe tão distante, sua música cada dia se faz mais conhecida e próxima no tempo e no espaço, e segue crescendo em adeptos e em universalidade. Para a música de Mozart, não existem fronteiras, e a conhecem tanto os bosquímanos como os esquimós, os chineses e os australianos.

Desde os três anos o pequeno Johannes- Chrysostomus – Wolfgang – Theophilus, foi assim batizado o nosso personagem, começou a interessar-se pela música. Enquanto seu pai dava aulas de cravo para a sua querida irmã Nannerl, de oito anos, ele se divertia durante horas buscando notas que concordassem harmonicamente no teclado. Aos quatro anos, seu pai começou a ensinar-lhe como uma brincadeira, algumas peças que sua irmã estava aprendendo, ele as assimilou em muito pouco tempo, tinha uma extraordinária memória: “aprende uma peça em uma hora e um minueto em meia de modo que pode tocá-lo sem erros” – escrevia seu pai.

Assim, em 1761, Mozart começa oficialmente, seus estudos musicais. Suas brincadeiras infantis tinham que ser com música para que prestasse atenção. Para transportar os brinquedos de um aposento a outro da casa, tinha de fazê-lo cantando. “Desejava conhecer tudo o que via”, escreve sua irmã Nannerl, ele nunca ia para a cama sem cantar uma canção. Nesse mesmo ano se realiza sua primeira aparição pública cantando em uma escola, durante a representação de uma comedia latina na universidade de sua cidade natal, Salzburgo.

Um ano depois, já possuindo suficiente desenvoltura no cravo para apresentar-se, ele e sua irmã se apresentaram ao público e ao príncipe Maximiliano III em Munique, onde a família de Mozart permaneceu por três semanas.

Quando Mozart tinha seis anos, seu pai Leopoldo transcreve no caderno de sua irmã um minueto, anotando na margem: “composto em janeiro de 1762”, este caderno era um dos que o pai havia dedicado a sua filha com exercícios de técnica e pequenas peças para ensinar-lhe música. E em suas páginas é aonde pouco a pouco vão surgindo as primeiras tentativas de composição do pequeno Mozart.

Ao minueto em Sol maior para clave K1 se sucederam outros, que por sua estrutura e estilo revelam como aquele menino já havia conseguido assimilar aos autores que seu pai havia reunido nos cadernos de estudo.

Era o começo de um caminho de belas composições (seu catálogo somou 626 obras), que foram sua vida. O início de um gênio, com uma assombrosa capacidade de concentração e de memória, com uma amplitude musical desconhecida até então, com uma facilidade para tocar ou escrever dolorosa para os músicos que lhe eram contemporâneos e com um amor inquebrantável pela música.

São 626 dádivas que nos legou em seus escritos, e agora nós, tantos anos depois, queremos comemorar dedicando-lhe 365 dias de homenagem por seu aniversário.

Felicidades, Mestre.

Sebastián Pérez

ANIVERSÁRIO DE 250 ANOS DE MOZART

A 250 anos do nascimento de Mozart, sabemos que nunca sentimos Mozart tão presente como desde a data de sua morte. E é possível que, com o passar do tempo, nós o tenhamos cada vez mais próximo de nós, com sua maravilhosa, original e insubstituível magia sonora. Poucos músicos tiveram seu talento reconhecido em vida. Aparentemente, Mozart o teve, pois sua precoce genialidade chamou a atenção daqueles que o conheciam. Admiração e inveja seguiram seus passos desde a sua infância até a plenitude de sua incomparável maturidade artística. Mas ele foi realmente valorizado? Como todos os gênios, Mozart guarda um mistério e o oculta no mais profundo de seu ser, ante aos olhos do profano. É como uma chama que estala enquanto acesa, mas o fogo constante e luminoso começa a brilhar depois, esse que ainda arde e nos ilumina. A Música de Mozart hoje é um símbolo riquíssimo e com tão variados matizes quanto pessoas capazes de escutá-lo e interpretá-lo, pois para todos tem algo a dizer.

Mozart é um clássico por excelência, somente nele as fórmulas tomam vida e expressão; é o mais fantástico e respeitoso conhecedor das regras; ele rompe a força da imaginação e sensibilidade. Marca uma época e um estilo que é, sem dúvida, universal e atemporal. Ainda hoje – e quem sabe quantos séculos mais – ele nos surpreende com sua música diáfana, com a claridade de suas melodias e a profundidade de suas harmonias. Num momento alegria, noutro, rapto místico; logo ternura, um sabor de tristeza e um rápido ofuscar de visão gloriosa das idéias inefáveis. Isto é Mozart. É inconfundível. É o gênio. O que todos conhecem. Aquele que, não obstante, mantém o mistério instigante de sua face oculta, a que gostaríamos de descobrir e a que nos leva a continuar presos na busca dessa chave sonora imortal.

Delia Steinberg Guzmán
MOZART, UM CLÁSSICO

Wolfgang Amadeus Mozart é considerado o mais exímio representante do Classicismo na história da música. Devemos entender também como “clássico” esse conjunto de qualidades arquetípicas dignas de serem imitadas, que serviram como modelo no Renascimento, tratando de recuperar os valores reinantes na antiga Grécia e que fundamentalmente são a proporção, a harmonia, a serenidade, a moderação, o equilíbrio e a ordem. E assim é a música de Mozart.

Mozart, como seu pai mesmo afirmou, foi um autêntico milagre, um dom dos céus, nascido em Salzburgo em 27 de janeiro de 1756 e morto em Viena em 1791. Um desses seres superiores, especiais, também chamados “encarnações históricas”, pois dominam toda a cultura e aglutinam todo o saber de seu tempo, deixando marcas para as gerações futuras.

Ele é o paradigma perfeito do equilíbrio e da ordem, e essa é a chave da Beleza que nos aproxima diretamente através da sua Música, pois sua preocupação pela forma não se plasma, como se poderia pensar, em uma rigidez fria e premeditada de absoluta perfeição. Sua Música é dinâmica, sempre fresca e eternamente viva e autêntica. Ele não rompe regras, é verdadeiro, mas sabe conduzir os mais atrevidos limites das leis que regem a harmonia e a tonalidade, chegando ao ponto de que às vezes é muito difícil até para os mais estudiosos analisar suas partituras e reconhecer os acordes utilizados, pois Mozart foi capaz de disfarçá-los jogando com todos os recursos possíveis para conseguir efeitos totalmente novos. Mozart é rebelde e atrevido, espontâneo e natural como uma criança e, ao mesmo tempo, eternamente jovem, apesar de sua enorme maturidade musical adquirida precocemente. Sua Música brota do mais profundo de sua alma, como uma imensa correnteza coberta de cores, ritmo e inspiração constante, que é definitivamente o que constitui uma das qualidades mais inacessíveis e misteriosas dos clássicos verdadeiros. Quem sabe será por essa “velocidade e graça helênica”, como dizia R Shumann, comentando sua Sinfonia em Sol Menor K.550, a famosa Sinfonía nº 40, uma das poucas escritas por Mozart em tom menor, e a mais “ romântica” dentro de seu perfeito classicismo, como premeditando as tendências dos que iriam segui-lo, motivo por que sempre voltamos a ele para beber e saciar nossa sede por esta inesgotável fonte de sabedoria. E por mais vezes que se escute, sempre se aprende, sempre se descobre algo novo ao estudar suas partituras.

Durante a segunda metade do século XVIII, na qual se concentram os 35 anos de vida de Mozart, a Europa sofre modificações profundas que vão ocorrer ao longo de todo o século XIX. A aristocracia, tanto civil como eclesiástica, vendo a concorrência que a burguesia lhe fazia no exercício do poder, se encastela cada vez mais em seus privilégios. A burguesia não se conforma e, com sua oposição às velhas idéias, favorecerá o nascimento de um novo movimento cultural chamado Iluminismo. Frente ao poder absoluto do Estado e da Igreja, os “iluministas” insistem na igualdade de todos perante a lei, na liberdade espiritual e ideológica, na tolerância religiosa e na busca da felicidade através do conhecimento e domínio da Natureza por procedimentos fundamentados na razão.

Logo virá o “Despotismo Iluminista” com seu famoso lema “Tudo para o povo, mas sem o povo”, e ainda que a princípio tenha resultado em uma hábil manobra do poder, o povo se deu conta do disfarce com que queriam enganá-lo e o desenrolar disso se deu em 1789 na Revolução Francesa. Esta é, muito brevemente resumida, a Europa em que Mozart viveu; o ambiente que propiciou sua rebeldia ante o triste e famoso Colloredo, o soberbo e arrogante arcebispo que tanto atacou sua sensibilidade e orgulho de artista enquanto duraram seus serviços na sofisticada corte de Salzburgo. Segundo J. Dent, Mozart é filho do Iluminismo, como Beethoven foi da Revolução, e a grande verdade de ambos reside no fato de que expressam os sentimentos da Humanidade de sua época, não a nostalgia sentimental do passado. Os verdadeiros artistas deixam ver, através de suas manifestações, o que é da sociedade de seu tempo, e o fazem de forma tão genial que suas obras são como uma síntese perfeitamente harmônica em seu equilíbrio e medida, ao passo que os elementos que a constituem são extraídos do caos. Ao ordená-la imprimem o toque genial da “divina proporção”, com o que participam do Ideal de Beleza e se tornam, como ela, imortais.

“As paixões – dizia Mozart -, sejam violentas ou não, nunca se devem expressar quando chegam a um ponto desagradável; e a Música, mesmo nas piores situações, nunca deve ofender aos ouvidos, mas sim cativá-los e continuar sendo sempre Música”. E assim faz ele sempre, esquecendo suas próprias misérias e sofrimentos que o rodeiam. Sua obra resume o melhor de toda a tradição alemã, a fresca melodia italiana e as conquistas técnicas de Haydn das sinfonias de Mannheim.

A sociedade em que Mozart vivia era muito diferente da nossa. O desprezo pelos intelectuais e artistas era moeda corrente entre os aristocratas da época, e Mozart teve que suportar contínuas humilhações na corte do arcebispo Jerônimo Colloredo. Durante os anos que esteve a seu serviço, foi mais uma criado assalariado, ainda que seu título fosse de “maestro da capela”. Devia sentar-se à mesa com a criadagem, ele que estava acostumado a estar entre os nobre e reis e que desde pequeno foi mimado e bem recebido em suas viagens por toda a Europa, como menino prodígio. Agora devia aceitar, por um mísero salário, as impertinências de um “déspota iluminista” que, para piorar, não tinham bom ouvido, nem especial interesse por música, além de desprezar todos os salzburgueses.

Por isso, em 9 de Maio de 1781, dia em que Mozart conseguiu sua desejada liberdade, rompeu bruscamente o seu elo com o arcebispo e tornou-se o primeiro músico independente da história. Esta data é considerada por muitos autores como “o 14 de julho dos músicos”. E Mozart, um jovem de 25 anos, é o primeiro músico que põe a dignidade de sua arte acima de uma vida garantida. Para poder ser ele mesmo, teve que romper uma tradição que, até o que se sabe, havia sido honrada nada menos que por J. S. Bach, por F.J. Haydn e por tantos outros que o precederam, e tentou viver exclusivamente por conta de sua genialidade, ainda que infelizmente sabemos que não conseguiu. J. S. Bach, o grande mestre do Barroco, foi um submisso maestro de capela, e Haydn esteve a serviço de uma família de príncipes até praticamente os 70 anos. Já no começo do século XIX, Beethoven foi o primeiro que pôde viver de suas obras, mas Mozart, depois de tentar durante os dez últimos anos de sua vida, morreu na miséria. No entanto sua luta pela liberdade não foi estéril, pois deixou o caminho aberto para todos os que o seguiram, desde Beethoven há nossos dias. Hoje “Mozart é prazeroso porque consola”, dizia o musicólogo H. C Hobbins Landon. E quem sabe será por isso também que Mozart está mais vivo hoje do que nunca, afinal, em todos os momentos da Humanidade necessita-se do consolo de uma Música na qual reine esse equilíbrio e essa ordem hoje perdidos.

Por isso todos o amam, e ao final sempre o preferem a qualquer outro. Porque “ele é único”, como dizia Rossini. E neste disparatado século XXI, todos os homens necessitam de algo equilibrado e harmônico para poder sobreviver em meio ao caos, e o que caracteriza fundamentalmente a tonalidade é que os sons estão submetidos a uma hierarquia em que têm uma nota principal – a tônica, som de que dependem todos os demais da escala e que, por sua vez, não tem especial significado, salvo por suas relações harmônicas como principal. Estas hierarquias estabelecidas pelas leis da tonalidade implicam na ordem e nas características cuja essência radica, precisamente, no sentimento de repouso que possui e transmite esse som principal, até o ponto em que nos tornamos tranqüilos escutando uma obra escrita em um determinada tonalidade, até que ouvimos o acorde final, no qual a tônica que reina é dita na última palavra. A maioria das obras clássicas, e também as barrocas e as primeiras do Romantismo terminam assim: com cadência perfeita. E Mozart, como já vimos, não se desvia da norma. Por isso não é apenas um consolo, ainda que hoje se necessite disso. Mozart nos transmite esse aspecto “natural” da Música com a qual nos sentimos plenamente identificados, devido justamente à tendência “natural” de nosso ser à perfeição, à ordem e ao Uno.

Para Christian Ivaldi, um bom pianista que sente Mozart, a dificuldade de interpretá-lo não reside no aspecto técnico, “tecnicamente Mozart não é cansativo, não é complicado. Mas no aspecto musical é o mais sensível que pode haver, o mais delicado, o mais fácil de manejar. E é esse lado natural da Música de Mozart o que constitui ao mesmo tempo sua essência mais preciosa e sua maior dificuldade. Quando se decifra uma partitura de Mozart, o pouco que se reproduz corretamente parece natural. Está escrito, é simples. Colocam-se em seus dedos o ritmo, o fraseado e o espírito do texto. Em seguida se põe a trabalhar, a dar precisão às coisas, e tudo se desmonta. Levam-se meses para chegar a esse “natural”, esse brotar da Música que parecia tão evidente…”É algo parecido com o trabalho que um ator tem que fazer: ler a obra, e inclusive assimilá-la, é fácil; mas ter que passá-la aos demais, interpretá-la de forma que manifeste seu caráter, sua profundidade humana e espiritual, é trabalho de muito tempo e é muito difícil de conseguir. O bom é que, para interpretar Mozart, não é necessário ter terminado os estudos de Música. Sua Música não exige grandes efeitos, nem demasiados recursos técnicos de pedais e surdinas. Precisa-se de clareza, uma boa dicção e, sobretudo, uma mente serena que saiba expressar a Música que “ não está nas notas, mas sim entre as notas”, como dizia Debussy, pois a alma de uma melodia nunca pode ficar parada no papel. O conteúdo de uma partitura é forçosamente limitado e, mesmo que os sinais e notas permaneçam imutáveis, a sensibilidade do intérprete deve captar e descobrir todas as maravilhas que se escondem entre eles, e assim “é sua devoção e sua humildade para com a Música” – como também afirmava Pablo Casals – “o que vai permitir entrever as alturas em que se pende o espírito criador”.

Ao completar 250 anos de seu nascimento, Mozart continua entre nós e hoje sua Música se eleva luminosa por cima deste mundo escurecido pela fumaça de uma contaminação total.

Mª Angustias Carrillo

O SIMBOLISMO DA FLAUTA MÁGICA

“A Flauta Mágica” de Mozart é um dos mais maravilhosos testamentos musicais que um músico-filósofo deixou como legado. Mozart não era somente um músico, mas um filósofo no sentido mais pleno da palavra. Ele procurou criar uma ponte entre o ser humano e o divino através do amor, como é demonstrado em todo o seu trabalho. Em “A Flauta Mágica”, o apolíneo, a iluminação do divino; e o dionisíaco, a transformação do homem, vão de mãos dadas. “A Flauta Mágica” estreou em 30 de setembro de 1791 em Viena, um pouco antes da morte de Mozart , em 5 de dezembro do mesmo ano. O livreto da obra pertence a Emmanuel Schikaneder, ator e irmão maçom de Mozart. O musicólogo Otto Jahn popularizou a teoria de que a obra havia sido criada em poucos meses e tinha contradições internas, como transformação da “Rainha da Noite” entre o primeiro e o segundo ato, devido à pressa com que havia sido composta. Uma carta entre Mozart e Schikaneder que data de 1790, na qual se fazem referências aos detalhes de uma das últimas cenas, prova o oposto.

O ARGUMENTO

No começo da obra vemos Tamino, um príncipe que chegou de terras distantes, fugindo de uma grande serpente. Três damas que se apresentam como acompanhantes da Rainha da Noite o salvam. Em uma cena posterior, a própria Rainha da Noite se apresenta e encarrega o Príncipe de salvar sua Filha Pamira, que havia sido raptada pelo malvado Sarastro. Tamino será acompanhado em sua missão por Papageno, um inocente homem coberto de penas que caça passarinhos para a Rainha da Noite em troca de vinho e pão. Os viajantes recebem uma flauta e um jogo de sinos mágicos como presente, e aparecem três jovens “formosos e sábios” que os guiarão.

Papageno primeiro encontra Pamina, logo depois de lutar com Monostatos, seu carcereiro mouro, e foge com ela. Enquanto isto, os três jovens guiaram Tamino até a entrada de três templos: o da Sabedoria, o da Razão e o da Natureza. Vozes pararam o príncipe ao tentar entrar nos templos, exceto o central, da Sabedoria. Tamino encontra um sacerdote que lhe explica que tinha sido enganado, e que Sarastro não é malvado como ele pensa. O príncipe fica completamente desconcertado e em solidão pergunta: “Noite eterna, quando retrocederás? Quando encontrarei a luz?”, as vozes invisíveis respondem: “Logo, ou nunca”.

Vemos logo a ação de ambos os instrumentos mágicos: a flauta de Tamino e os sinos de Papageno. Ambos têm o poder de enfeitiçar as feras, aplacar a cólera e trazer paz aos corações.

Ao final do primeiro ato, Sarastro regressa de uma caçada em sua carruagem puxada por leões. Tamino, Papageno e Pamina são pegos por Monostatos e levados à presença do supremo sacerdote. Tamino e Pamina se encontram pela primeira vez e Sarastro ordena que sejam conduzidos ao templo de provação com suas cabeças cobertas, pois inda não estão purificados.

No segundo ato, tanto Tamino quanto Pamina são postos sob diversos testes. Tamino é tentado por três damas do Reino da Noite, mas não cede às suas intrigas e mantém seu voto de silêncio. Pamina recebe de sua mãe, a Rainha da Noite, a ordem de assassinar Sarastro, mas ela prefere o suicídio a seguir os passos de sua mãe e ver-se separada de Tamino, que ela pensa que já não a ama, pois ele manteve seu voto de silêncio na frente dela. Os três jovens a salvam e a fazem ver que Tamino ainda a ama. Enquanto isto Papageno pretendia acompanhar Tamino, mas os Mistérios e as Provas não são para ele.

Agora unidos, Tamino e Pamina devem enfrentar o mais perigoso dos testes, a passagem através dos quatro elementos, simbolizado pelo trabalho pelo fogo e pela água. A Flauta mágica os guia através dos elementos e seu triunfo nos mistérios de Isis é proclamado. Por sua vez Papageno decide pelo suicídio, pensando que a vida era ingrata com ele por não lhe oferecer nem sequer o amor de uma mulher. Os três jovens intervêem novamente, salvando-o, e trazendo Papagena de volta, tendo então, a sua dama prometida.
Monostato se alia à Rainha da Noite para destruir o templo solar, mas as forças da obscuridade são repelidas para sempre. A noite vai aos poucos dando lugar à aurora. O sol surge e o ambiente ganho cada vez mais luz. A obra termina com a invocação: “Salve Iniciados, penetrastes através da noite. Graças a vocês, Isis e Osíris! Venceu a força e premiou com coroa eterna a Beleza e a Sabedoria.

FONTES SIMBÓLICAS

Os principais elementos simbólicos utilizados em “A Flauta Mágica” pertencem à tradição alquímica e astrológica. A marca egípcia (a obra se desenrola principalmente em um conjunto de templos dedicados aos mistérios de Isis e Osíris) se deve à fascinação que causou o redescobrimento do Egito no século XVIII e à influência que exerceu sobre Mozart o humanista Ignaz Von Born, autor de um livro sobre os Mistérios Egípcios. Os símbolos alquímicos são claros através de toda a obra: por exemplo, Tamino e Pamina devem passar pelos quatro elementos, simbolizados na obra pelo Fogo e pela Água. Os sacerdotes se reúnem em um bosque de palmeiras de prata com folhas de ouro. Os diversos caracteres também se relacionam com os diferentes planetas do sistema astrológico que contemplam 2 astros e 5 planetas. A Rainha da Noite se relaciona com a noite e os mistérios lunares; seu reino é o bosque. Sarastro, que ao final do primeiro ato aparece em um carro puxado por leões, encarna as forças solares. Junto a estes símbolos, a presença das chaves numéricas acompanha os elementos de interpretação da mensagem da obra. O número 3 e seu simbolismo é o mais freqüentemente utilizado (as três damas, os três jovens, os três templos, os três acordes iniciais da abertura, entre outros, demonstram a importância do número 3).

As três etapas alquímicas

Podemos estudar a estrutura da obra de acordo com as três etapas alquímicas:

A Obra ao Negro, regida por Saturno: corresponde ao primeiro ato, que transcorre principalmente no bosque. Durante esta etapa, Monostatos é o principal obstáculo, relacionado com Saturno, quer dizer, a prisão da matéria. Ele é o carcereiro de Pamina que se interpõe entre Tamino e Pamina (ao final do primeiro ato) e está apaixonado pela Princesa, sem poder possuí-la.

A Obra ao Branco, regida pela Lua: esta obra corresponde as primeiras provas a que Tamino e Papageno se submetem, e por outra parte Pamina. Nesta etapa ainda não foi realizado o casamento alquímico.

A Obra ao Vermelho, regida pelo Sol: guiados pela força solar, Tamino e Pamina, agora reunidos pelo matrimônio alquímico, passam através dos quatro elementos. Nesta etapa também são destruídas definitivamente as vestes da Rainha da Noite e de Monostatos, símbolos da matéria inferior.

Os personagens

A Rainha da Noite: Soberana do bosque e dos poderes psíquicos. Aparece em um trono estrelado. Sua ambição a faz querer destruir o templo solar e usurpar do poder ao fazer Sarastro suceder o pai de Pamira como sacerdote do templo.

Sarastro: O sábio perfeito, humilde servidor dos deuses Isis e Osíris, como fica manifesto em várias passagens da obra, quando invoca a Vontade divina.

Tamino: Príncipe que chegou de terras distantes como em muitos contos tradicionais. É puro, valente e sincero, e foi predestinado pelos deuses para suceder Sarastro e unir-se a Pamina em um matrimônio sagrado.

Pamina: Princesa, filha da Rainha da Noite e hierofante predecessora de Sarastro. Deve superar a dúvida e transformação da natureza lunar e solar. Representa o passo entre Vênus Pandemos e Vênus Urânia, quer dizer, a alma dupla.

Monostato: O carcereiro de Pamina é representado como um mouro. Sua natureza é tirânica e passional.

Papageno: Lembra-nos Sancho Pança. Acompanha Tamino contra sua vontade e prefere os prazeres simples aos elevados Mistérios. Sua contrapartida é Papagena, com quem finalmente fica em sua plenitude.

As três damas: Acompanham a Rainha da Noite e simbolizam os três estados da matéria.

Os três jovens: Os encontramos tanto no bosque como no reino de Sarastro. São as forças invisíveis da natureza, eles acompanham e guiam os discípulos.

PROVAS E INICIAÇÕES

Estas acontecem através de toda a obra, principalmente no segundo ato.
No primeiro ato vemos uma cena em que Tamino está tocando a flauta mágica e todas as feras do bosque se rendem ao encanto da música. Mas de repente ele se lembra de Pamina e o encanto desaparece; o discípulo renuncia aos poderes inferiores e continua em busca de sua alma.

As iniciações e Provas do segundo ato não são apenas rituais, mas geralmente carregam uma situação de perigo, como fica claro na evocação de Sarastro aos deuses Isis e Osíris: “Oh Osíris, ilumina com o espírito da Sabedoria o novo casal. Vocês que guiam os passos dos caminhantes, fortalecendo-os com paciência durante o perigo. Permite-lhes vê-los como frutos dessas provas. Mas se tiverem que morrer, premie a virtude de seu valoroso esforço e acolha-os em sua morada”. Estas linhas nos recordam as palavras de Krishna no Baghavad Gita: “Morto ganharás o céu, vitorioso dominarás a terra, então, levanta-se, Parantapa, e apressa-se a lutar.”

No segundo ato, Tamino mantém o voto de silêncio que se havia imposto e rejeita as três damas. Pamina deve escolher entre sua mãe e o reino solar, que culmina na separação de Tamino. Estas provas pertencem aos Mistérios menores e se alude a elas na obra como etapas de purificação.

Os mistérios maiores se acham simbolizados pela passagem através dos quatro elementos, que realizam em conjunto Tamino e Pamina, guiados pela Flauta Mágica.

OS INSTRUMENTOS

A flauta de Papageno nos faz lembrar da Seringa de Pan na Grécia. Na obra só toca os primeiros cinco tons de uma escala maior.

Os sinos mágicos entregues a Papageno se relacionam com certas forças e poderes da natureza. Todas as antigas tradições nos falam do poder dos sinos para evocar as forças invisíveis.
A Flauta Mágica havia sido talhada em uma noite mágica, pelo pai de Pamina. A Rainha da Noite entrega a flauta a Tamino, a qual lhe permite dominar a natureza no primeiro ato. Ao começar as provas ela lhe é retirada, mas depois lhe é devolvida a tempo. Com a flauta, Tamino e Pamina superam com êxito as provas que envolvem os quatro elementos. Segundo a tradição grega, a flauta foi inventada por Atenea, mas ao perceber que a flauta, ao ser tocada, desfigurava seu rosto, Atenea a amaldiçoou e a lançou à terra. A flauta foi encontrada por Marsias, que com ela desafiou Apolo em um torneiro musical, mas foi escalpelado por tal atrevimento. A flauta é como uma coluna com diversos orifícios (como a coluna vertebral), e seu uso indevido se relaciona com a advertência que nos faz A Voz do Silêncio sobre os Siddhis inferiores.

Como filósofos, é importante que saibamos descobrir e reconhecer as pegadas dos homens que sonharam e trabalharam por um Mundo Melhor. Mozart não só foi um deles, mas também o criador de uma misteriosa mensagem que aparece em nossa constelação histórica para recordarmos que Deus e os Mestres sempre nos acompanham.

DO MAIS PROFUNDO DA HISTORIA – Um Deus para a Música: Apolo

Eu sou o Deus da Música. Eu sou o Deus do Oráculo. Nada é mais agradável aos ouvidos dos Deuses que esses maravilhosos sons vindos das cordas, extraídos do vento, paridos dos ventres inchados de tambores e atabaques. Do mais insondável Profundo da História, a música sobe até todos os Deuses do Universo. Os astros ritmaram seus acordes no átrio do infinito, e seu concerto inacessível ressoou entre o que o foi criado.
O mundo se criou com música. O Homem, tão pequeno, tão torpe, tão limitado frente à soberba grandeza de seu contexto, aprendeu em seguida que os sons eram sua comunicação com Deus. O homem buscou sua orquestra entre as coisas que tinha: entalhou troncos, bateu pedras, golpeou ossos, soprou bambus, estirou os tendões dos animais. Moldou sua rouca voz e a dirigiu aos céus.

E nós, os Deuses de todos os tempos, conhecidos e desconhecidos, os nominados e inomináveis, nos sentimos satisfeitos ante esse presente para nossos ouvidos.

E fomos favoráveis àquela pequena criatura. Demos-lhe o que nos pedia com seus cantos propícios: a casa, a colheita, o filho, a saúde. A criatura cresceu. E com ela cresceu seu amor pela música e pela sua capacidade de fazer instrumentos. Fez nascerem flautas e tambores, cítaras nas conchas das tartarugas, crotalos com discos de pedra polida e depois de metal brilhante; tirou sons dos chifres dos animais, esticou sua pele para golpeá-la. Aprendeu a melodia toda da natureza, que eleva a Deus um canto de amor a cada manhã. Nasceram a cítara e o sistro: é a melodia das estrelas atada a umas cordas que sabem invocar os Deuses.
Presentearam-me a cítara, e eu a amei, e me servi dela.

Sou já lhes disse Apolo Citaredo.

Vi e ouvi muitos instrumentos musicais. Eu amo a todos. Sou o Oráculo, e vejo…
Vejo novas formas para criar melodia. Se chamam violino, piano e viola. E vejo homens que são gênios, cujos nomes me soam de forma estranha: Beethoven, Mozart, Schubert, Strauss, Haendel…

Na realidade não importa muito como se chamam em seu mundo. Importa que criaram uma Beleza ilimitada. Que, continuando a linha daqueles primeiros homens que golpearam ossos sob a lua, vibraram com a força de umas notas. Chamaram os Deuses com um grito de Harmonia. Fizeram aparecer estrelas melodiosas em um céu obscurecido por medo.

Com eles eu toco a minha lira. Com vocês, entôo um canto imortal.

Mª Ángeles Fernández

W.A. Mozart E a Maçonaria

O que representou a maçonaria para Mozart e que papel teve em sua criação? Apesar de, com sua morte, toda a correspondência maçônica ter sido destruída por sua família, são muitos os dados e referências de que dispomos. As primeiras informações biográficas se devem a Georg Nikolaus Nissen, que em 1828 publicou uma biografia de Mozart. Nissen tinha se casado com a viúva de Mozart, Constanza Weber. Essa biografia é ampla em informações sobre a família, os estudos e as viagens, mas pouco inclui sobre suas relações maçônicas.Trabalhos sucessivos continuaram na mesma tônica. Apenas na segunda metade do Século XIX os biógrafos se preocuparam em questionar sobre este aspecto da vida de Mozart; e nos últimos anos se têm obtido resultados surpreendentes.

A primeira surpresa é o fato de que Mozart vinha de uma família estreitamente ligada à Maçonaria, dedicada à arte da construção. Seu bisavô, David Mozart (1620-1685), era pedreiro e mestre de obras em Augusta. De seus quatro filhos, dois seguiram os passos do pai, fazendo-se pedreiros. Um deles conseguiu muito renome como mestre de obras, construiu a igreja de São Jorge em Augusta e participou da construção da casa dos famosos banqueiros Fugger. É notável que na família de Mozart o ofício de pedreiro (junto com o de encadernador) se manteve até fins do século XIX.

O biógrafo Otto Jahn, em “The Life of Mozart”, publicada em 1880, foi o primeiro que insistir nesta particularidade tão interessante e desconhecida do artista. Este mesmo silêncio se manteve em relação a outros célebres músicos de sua época que também foram maçons, como no caso de Franz Joseph Haydn que, como veremos, foi iniciado na Maçonaria em fevereiro de 1785 na loja “A Verdadeira Concórdia” e que escreveu nada menos do que seis sinfonias para a loja “Olympique de la Parfaite Estime”. Também Luigi Cherubini, que figura com o título de Mestre na loja parisiense “Saint-Jean de Palestine”, ou Franz Liszt, iniciado como aprendiz, em Frankfurt, em 1841, e que recebeu o segundo grau em fevereiro de 1842, e depois o terceiro grau, anos depois, em 1870, em Budapeste.

Assim poderíamos citar muitos outros, incluindo alguns dos que não se tem absoluta certeza de sua relação com a Maçonaria, mas que por suas tendências ideológicas denotam uma estreita relação com ela. É o caso de Carl-Philipp Emmanuel Bach, Beethoven, Berlioz, Mendelssohn, Puccini, etc…

Essa vontade de ignorar e inclusive ocultar o fato de homens ilustres terem pertencido à Maçonaria foi fruto do conceito excessivamente negativo de alguns historiadores, que tinham se apoiado nas facções “paramaçônicas” de linha econômica, política e religiosa que começaram a se estender e se separaram das raízes iniciais da Maçonaria.

O denominador comum da Maçonaria no século VXIII em países tão distintos como Áustria- Hungria, Itália, Portugal, Suíça, França, Holanda, Bélgica e Inglaterra era a busca da Harmonia da Natureza, obra do “Grande Arquiteto Universal”. Propagadora da Fraternidade Universal entre os homens, aparece como uma reunião de filósofos (mas além das divisões políticas e religiosas) que acreditavam em Deus, respeitavam a moral e buscavam ajudar-se e trabalhar em conjunto pelo bem da Humanidade, conservando as fórmulas cerimoniais, os símbolos e a mística profunda de seus antepassados.
A Maçonaria que Mozart viveu era como uma Escola de Formação Humana, baseada na tradição, no simbolismo, na fraternidade, indo além da cultura, das classes sociais, da ideologia, da religião; na luta contra todo o tipo de fanatismo, e a favor do aperfeiçoamento do homem que constrói a Humanidade. Ainda que o ingresso de Mozart na Maçonaria tenha sido relativamente tardio, pois já estava com 28 anos, foi a partir dessa época que ele escreveu suas mais célebres composições musicais maçônicas. Das obras que precedem a sua iniciação, mas que já são de inspiração maçônica, veio sua obra mais esotérica, A Flauta Mágica, todas, em maior ou menor medida, recorrendo a símbolos, ritos e encenações esotéricas.

Desde a sua infância teve ocasiões de freqüentar alguns maçons da sociedade austríaca. O Duque Francisco de Lorena, esposo da Arquiduquesa e futuro Imperador da Áustria, foi iniciado na Maçonaria em 1731 por Desaguliers. Um dos primeiros contatos de Mozart com um texto literário maçônico, que musicou, como muitos outros e por diversas razões, foi “Am die Freude”, “À Alegria”, Lied (Canção) em Fá Maior K-63, publicada no suplemento musical de um diário de agosto de 1768. Esta lied para canto e cravo, que segue as leis do gênero, foi composta em Olmütz, em dezembro de 1767. Foi dedicada à filha de Dr. Joseph Wolff, médico maçom que acabava de salvar Wolfgang da varíola. Ao compô-la ele “paga” uma dívida de gratidão. O que se deve destacar de maneira especial é o poema, um texto de J.P. Uz, celebrando a “Alegria, Reino dos Prudentes”, tirada de uma recompilação de textos maçônicos.

Mesmo que a música não tenha características particularmente maçônicas, o poema não oferece dúvida, pois a Alegria é um dos temas maçônicos por excelência (recordemos que menos de vinte anos mais tarde, Schiller escreverá para seus irmãos maçons a Ode à Alegria, e inclusive o próprio Mozart se dedicará em 1785 a uma nova cantiga: Die Maurerfreude). Pouco tempo depois, e das mãos de outro médico maçom, o Dr. Anton Mesmer, grande aficionado da música e célebre por seus trabalhos sobre magnetismo animal, Mozart recebeu a incumbência de colocar a música em uma paródia burlesca extraída de “O Divino da Aldeia” de Jean-Jacques Rousseau, escrita em 1752 e adaptada por Favart. “Bastien un Bastienne”, opereta K50, em que os personagens vão sorteando provas e evoluindo em uma síntese de união, é um claro expoente da precoce relação de Mozart (com 12 anos de idade) com as idéias maçônicas.

Aos 16 anos, em 1772, quando estava em Salzburgo a serviço do Conde-arcebispo Hieronymus Colloredo, musicou um poema de inspiração maçônica. Trata-se de “Oh, heiliges Band”, “Oh, Santa União de Irmãos”, para canto e piano, K-148. O texto, de fato, era um Hino de festa para a loja de São Juan, do poeta Ludwig Friedrich Lenz, inserida em uma das mais antigas coleções alemãs de cantos maçônicos, publicada em Altenburg em 1746, e que também figura na primeira página da recompilação explicitamente maçônica entitulada “Freymaurer heder mit melodien”, publicada por Wonter em Berlim em 1771.

No ano seguinte, em 1773, Mozart volta a escolher um poeta maçom (relacionado com Mesmer), o barão Tobias Philipp von Glebber, conselheiro do Estado da Imperatriz Maria Teresa e que Mozart voltaria a encontrar anos depois em sua loja de Viena “A Verdadeira Concórdia”. Teria que compor a música para colocar em cena o seu drama heróico “Thamos, Rey de Egipto”, K-345. O tema é um pseudo-mitológico inspirado na novela maçônica francesa “Sethos”, de Abad Terrasson. O enfrentamento entre o bem e o mal, entre a luz e a obscuridade, assim como a evocação aos ritos e mistérios do Egito, são parte fundamental da obra. Dessa forma, parece que o drama heróico de Gebler não foi indiferente a Mozart, já que seis anos depois, em 1779, voltaria a ele; além de ter sido claramente o germe de sua obra maçônica por excelência: A Flauta Mágica.

Não se sabe com certeza o que Mozart conhecia em 1773 (com 17 anos de idade) do papel e significado da Maçonaria. Mas não necessitava muito para se aprofundar no combate heróico entre as forças regressivas da noite e as forças progressivas da luz. Quando em 1779 reformou a obra, que não tinha conseguido grande sucesso e era uma das obras pelas quais Mozart tinha especial afeto, deixou intacto o primeiro coro, em que havia posto toda a paixão de seus 17 anos, e que era precisamente uma ação de graças ao Senhor vencedor das trevas.

Chegamos assim ao encontro definitivo de Mozart com a Maçonaria, apenas 7 anos antes de sua morte. Teve lugar em Viena, e entrou ao lado do barão Otto von Gemmingen-Hornberg, Venerável Mestre da loja “Beneficencia”, fundada por ele mesmo um ano antes, em 11 de fevereiro de 1783. Um homem apaixonado por teatro e diretor de alguns jornais em Viena, foi tesoureiro de Manhein, de onde deu cartas de recomendação a Mozart em sua passagem por esta capital, em sua viagem de 1777 a Paris. Esta pequena loja era ainda muito jovem e seus membros preferiam trabalhar no Templo da loja mais importante: “A Verdadeira Concórdia”. Tanto essa loja como a “Beneficência” eram filhas da “A Esperança Coroada”.

Em Viena, a primeira loja foi fundada em setembro de 1742 por membros de uma loja de Brelau. A Maçonaria prosperou nos países da coroa austríaca, em parte devido ao exemplo que Francisco de Lorena deu ao iniciar-se em 1731. Uma bula papal de 1739 que condenou a Maçonaria não foi publicada na Áustria, pois o Duque conseguiu convencer Carlos VI que não a levasse em consideração. No entanto, a Maçonaria não contou com a aprovação da Imperatriz Maria Teresa nem com a de seu filho José II.

Em 1781, quando sua mãe morre, José II faz valer um decreto imperial proibindo todo tipo de Ordens ou Associações, tanto espirituais como seculares, que estivessem submetidas a autoridades estrangeiras ( as lojas austríacas eram promovidas pelas Grandes Lojas estrangeiras, principalmente a Zinzeerdorf, em Berlim). Assim nasceu, oito meses antes do ingresso de Mozart na Maçonaria, em abril de 1784, a Grande Loja da Áustria. Esta Grande Loja abarcaria sete províncias: Áustria (com 17 lojas), Bohemia (7 lojas), Lemberg-Galizia (4 lojas), Hungria (12 lojas) e os Paises Baixos Austríacos (17 lojas). Mozart foi iniciado como aprendiz maçom em 14 de dezembro de 1784 aos 28 anos. Umas semanas antes, ao final de outubro, ou no mais tardar na primeira de novembro, Mozart havia depositado sua candidatura na loja vienense “Beneficência”. As listas que subsistem das lojas vienenses constituem um importante testemunho. Um texto do secretário adjunto, Schwackhardt, indica o pedido oficial:

Pedido Oficial de Ingresso:

O Maestro de capela Mozart.

Nosso secretário Hoffman, que está em viagem, anuncia o candidato às respeitáveis lojas irmãs. Foi declarado há quatro semanas na respeitável loja de distrito e queremos dar continuidade à sua admissão na próxima semana, caso as respeitáveis lojas irmãs não tenham nenhuma objeção contra ele.

Oriente de Viena, 5 de dezembro, 1784.

Schwackhardt, secretário.

Não havendo nenhuma objeção à entrada de Mozart, a cerimônia foi definitivamente anunciada desta forma:

Loja Beneficência

Em 14 de dezembro de 1784, às 17 horas e meia, cerimônia de primeiro grau.

Wenzel Summer, vigário em Erdnerg, e Mozart, maestro de capela. Propõe: Franz Wolf, contador a serviço contábil da Corte e da cidade.

Oriente de Viena, 11 de dezembro de 1784.

Schwackhardt, secretário.

Parece que, por ocasião da iniciação de Mozart, interpretou-se sua cantata “A ti, Alma do Universo”, K-429. Trata-se com certeza de um Hino ao Sol para a festa do solstício de verão, ponto culminante do ano maçônico. A obra se impõe por um sentimento de cálida alegria que a anima, na presença do Universo esplendoroso cuja alma é o Sol. Também se usava ao final da cerimônia de iniciação de primeiro grau maçônico, quando o aprendiz, depois de ter sofrido as provas simbólicas, recebe a luz O autor do texto é desconhecido. E no primeiro coro canta o reconhecimento do maçom pelo Sol, fornecedor de riquezas e luz. Depois responde a ação de graças a cargo do tenor solista. É o canto ao Sol, o único Deus que ele exalta no texto: “Oh, poderoso, sem você não viveríamos. Nós agradecemos que a generosa natureza dispense cada um de seus tesouros e dê cada um de seus encantos, que cada prazer desperte, que tudo se alegre nos campos transbordantes de bênçãos!”

Ainda que não se saiba com certeza quando Mozart colocou música nesta obra, pois no catálogo manuscrito do próprio autor não consta a data em que isso foi feito, há quem diga que foi antes de fevereiro de 1784. Mas como nesta data ele ainda não participava da Maçonaria, temos que supor que esta música foi solicitada por algum amigo, antes de sua entrada na Ordem, talvez pelo próprio Otto von Gemmingen, que acabava de fundar nesse mesmo ano de 1783 sua loja de Viena, “Beneficência”. O que se encontrou foi uma carta de 27 de fevereiro de 1800 ao editor Andre, enviada pela esposa de Mozart, Constanza, na qual afirma que a obra foi executada na loja enquanto Mozart era vivo, o que implica sua assistência e sua iniciação.
Meses mais tarde, Mozart foi elevado ao segundo grau (o de Companheiro), em 7 de janeiro de 1785, porém em outra loja vienense, “A Verdadeira Concórdia”, cujo fundador, o barão Ignaz von Born, era considerado um expert nos Mistérios do Antigo Egito. Será nele que Schikaneder e Mozart se inspirarão para fazer “A Flauta Mágica”.
Pouco depois, ao final de março, Mozart apresentou a candidatura de seu pai, Leopoldo, cuja iniciação teve lugar em sua loja “Beneficência”, em 06 de abril de 1785. Para a cerimônia da passagem de grau de Companheiro para seu pai, Wolfgang Amadeus musicou o poema de Joseph von Ratschky, “A viagem do Companheiro”, feita para canto com acompanhamento de piano K-468. Estamos diante da primeira obra que Mozart compôs para uma reunião maçônica desde a sua iniciação. Muitas obras anteriores, como vimos, tinham se inspirado no espírito maçônico, mas nenhuma tinha sido destinada a uma execução ritual numa reunião de loja.

Em 22 de abril de 1785, Mozart passou ao terceiro grau, o de Mestre, junto com seu pai, que quatro dias mais tarde viajaria de volta a Salzburgo. Nesta ocasião, a cerimônia teve lugar na “A Esperança Coroada”. Esta loja era mais ativa no campo musical e o próprio Mozart o demonstrou escrevendo para ela uma de suas composições maçônicas mais significativas: “A Alegria Maçônica”, cantata em Mi maior para tenor solo e coro de homens K-471, e “Música Fúnebre Maçônica” K-477 para orquestra.
”A Alegria Maçônica” é a primeira grande composição deste gênero. Foi executada em 24 de abril de 1785 em um banquete que a loja “A Esperança Coroada” ofereceu em homenagem a Ignaz von Born, Venerável da loja “A Verdadeira Concórdia”, por ocasião de um título que José II concedeu a Born. Os aspectos desta cantata serão encontrados na maioria das obras maçônicas posteriores a essa: a tonalidade de Mi maior e o predomínio dos instrumentos de sopro sobre as cordas no acompanhamento orquestral. Este último traço parece proceder de uma tradição ritual que Mozart renovou. Também retomou a utilização de clarinetes, de “corni di basseto” e baixos, entre os instrumentos de sopro oficiais das reuniões maçônicas, dando-lhes preferência sobre os outros sopros.
”Música fúnebre maçônica” é um provérbio musical. Foi executada em 17 de novembro de 1785 em memória de dois irmãos falecidos no início desse mesmo mês. Não obstante, Mozart a incluiu em seu catálogo no mês de julho, o que indica que a tinha escrito para outro fim e foi utilizada para esta ocasião. O destino musical da obra pode ter sido o do ritual da Maestria (terceiro grau). O Companheiro, que vai converter-se em Mestre, deve reproduzir simbolicamente a morte e a ressurreição espiritual de Hiram, construtor do Templo de Salomão. Condenado à morte pela ignorância, fanatismo e ambição, retorna à vida pelo Saber, a Tolerância e a Generosidade. Ao mesmo tempo, golpeado três vezes, morre para os planos “material, psíquico e mental” do homem velho, e renasce numa vida nova, espiritualizada, divina.

Estamos, então, diante de uma obra que testemunha até que ponto Mozart está impregnado pelos mistérios maçônicos, e até que ponto os símbolos são canal de expressão em suas composições. A respeito de suas idéias filosóficas sobre a morte, citaremos a carta que Wolfgang enviou a seu pai em 4 de abril de 1787, quando Leopoldo se encontrava no leito de morte:

“Como a morte é o verdadeiro destino final de nossa vida, por anos eu tenho me familiarizado de tal modo com esta verdadeira e excelente amiga do homem, que sua imagem não tem qualquer coisa de espantoso para mim, mas sim, ao contrário, é totalmente calma e reconfortante. E eu agradeço a Deus por ter-me concedido esta felicidade, por ter oferecido a oportunidade de aprender a conhecê-la como a chave de nossa verdadeira felicidade.
Outro grande músico e amigo íntimo de Mozart também foi iniciado no grau de Aprendiz na loja vienense “A Verdadeira Concórdia”; referimos-nos a Joseph Haydn. Efetivamente, uns meses antes de passar para o terceiro grau, em 11 de fevereiro de 1785, Mozart assistiu à iniciação de seu amigo Haydn. A este evento dedicou os seis quartetos de corda.
Não obstante, Haydn não retornaria mais à loja devido ao edital publicado pelo Imperador Jose II relativo à Maçonaria: ele impunha a unificação das lojas e um controle mais severo por parte da polícia. Jose II tinha organizado todas as coisas à sua forma.; a reforma da Maçonaria fazia parte do pacote de inovações, ao lado do edital de tolerância, da supressão de conventos, secularização de matrimônios, supressão do privilégio de isenção dos religiosos, etc. Assim então, em 11 de dezembro de 1785 publicou um edital que decretava que somente podia existir uma loja na capital de cada região. As lojas podiam realizar reuniões quantas vezes quisessem, desde que dissessem aos magistrados ou à polícia o dia e a hora em que fariam as assembléias.
O Imperador observou que os maçons tinham se tornado muito poderosos e que ele já não controlava suas atividades. Habilmente, quis reduzir de forma sensível o número e as sedes maçons ao impor esta reorganização das lojas. Deste modo, as oito lojas de Viena se fundiram em duas: “A Verdadeira Concórdia”, a “Palmeira” e a “As Três Águias” se uniram em uma loja chamada de “A Verdade”; e “A Esperança Coroada”, a de Mozart, “Beneficência”, e “Três Fogos” formaram a principal loja de Viena, que recebeu o nome de “A Esperança Novamente Coroada”, que abriu suas portas pela primeira vez em 14 de janeiro de 1786.

Para esta ocasião, a inauguração de “A Esperança Novamente Coroada”, Mozart escreveu as músicas maçônicas: “Para a abertura da loja”, canto maçônico para solo e coro de homens em Si bemol Maior K-483, e “Para a Clausura da Loja”, canto maçônico para solo e coro de homens em Sol bemol Maior K-484. Para a inauguração da nova loja e a instalação do novo Mestre, Mozart compôs toda a parte musical da cerimônia. A primeira parte é, diplomaticamente, um canto de elogio e agradecimento ao Imperador José II, que com tanta dureza os havia tratado: “Converter-se-ão hoje, amados irmãos, nos encantos e cantos de alegria, pois a benevolência de José, em cujo peito arde um triplo fogo, nossa Esperança Coroou novamente” (K-485). A segunda parte é um elogio àqueles dignos de uma nova loja.

São tempos difíceis, pois não somente José II na Áustria, mas também quase todos os governantes europeus, temerosos do ambiente pré-revolucionário, proibirão as assembléias secretas e perseguirão os maçons. Mesmo assim, Mozart, fiel a seus ideais e à sua nova loja, escreve duas peças que, por sua instrumentação, denotam claramente o destino cerimonial: o Adágio para dois clarinetes, dois corni di basseto e um clarinete baixo” em Si Maior K-411, e o Adágio para dois corni di basseto e fagot”, em Fá maior K-410. Ainda que não estejam escritas no catálogo de Mozart , são incluídas no período 1785-1786. O Adágio em Si é cortado por longos silêncios que, segundo Roger Cotte, estão destinados a intercalar as frases rituais do cerimonial. Além disso, os ritmos são muito medidos, e foi muito provavelmente feito para a iniciação do primeiro grau.
A partir de janeiro de 1786 e até 1791 não encontramos nenhuma obra datada por Mozart e destinada a ser executada em reuniões maçônicas. Tão somente sabemos, em cinco anos e meio, de um concerto oferecido em 12 de janeiro de 1788 por motivo da boda de sua Alteza Real, Elizabeth y Franz.

“A sociedade dos Franco-maçons de Viena festejou as bodas de suas altezas reais Elizabeth e Franz com uma magnífica academia musical, que teve caráter tão raro quanto sagrado, pois os virtuosos mais importantes, enquanto membros da loja, apresentaram seus talentos e comoveram profundamente os 200 irmãos presentes.” Entre os artistas convidados figuram Wolfgang Amadeus Mozart e Valentín Adamberger.
Finalmente, e à margem da célebre ópera maçônica “A Flauta Mágica”, encontramos ainda três obras ligadas à Maçonaria.

A primeira é a pequena cantata alemã “Vocês, os que honram o Criador deste imenso mundo”, para soprano o tenor sole e piano. Foi escrita em julho de 1791 e posteriormente publicada ao final de um livro editado em Hamburgo, cujo autor era Franz Heinrich Ziegenhagen, franco-maçom e negociante de Hamburgo. Este livro trata sobre a moral maçônica e abarca detalhes da vida em uma colônia para a formação de jovens.

A música põe muito cuidado em todas as inflexões do texto. Começa com uma chamada para escutar a voz do “Criador do Universo infinito, chamado Yahvé, Deus ou Brahma”. E a continuação transmite uma mensagem de amor a Deus, à sua criação e à paz eterna: “Amem a ordem, a prudência, a harmonia. Amem vocês mesmos e seus irmãos. Que uma eterna amizade aferre essas mãos fraternais que conheceram durante tanto tempo o erro, e nunca tiveram a verdade. Rompam as cadeias do erro, desfaçam os véus do prejuízo, despojem os disfarces que vestem a humanidade… É benfeitora a única razão que nos instiga a realizar os melhores atos, são vocês, os homens, que os encaminham para a desgraça, quando com louca cegueira retrocedem a um nível inferior, ao invés de ir adiante…Então descansará sobre vocês toda a minha complacência, não se derramarão sobre vocês as minhas tristezas, mas minhas lágrimas de alegria…Então conquistarão a verdadeira felicidade da vida.” Estas são algumas estrofes da Lied.

Apenas nos restam “Elogio da Amizade”, cantiga maçônica em Do maior K-623, e o Lied “Enlacemos nossas mãos”, em Fá maior K-623. Para a inauguração de um novo local de reunião ( um novo templo ) de sua loja, Mozart escreve a sua última cantiga, assim como uma Lied que a acompanha, destinada à “clausura da loja”, quer dizer, ao fechamento da reunião. Está datada em Viena em 15 de novembro de 1791 e com texto atribuído a Emmanuel Schikaneder, o famoso autor do livreto de “A Flauta Mágica”, homem de teatro, que também formava parte da Maçonaria. A cantiga, tanto pelo texto como pela expressão musical, nos dá idéia de um Mozart que estava gravemente doente, que se desinteressa pela morte futura para cantar com entusiasmo a alegria de viver e sua esperança em um amanhã mais fraternal. É um homem que trava sua batalha e è vitorioso:

“É doce o que sente o maçom neste dia de festa, que marca uma nova e estreita cadeia fraternal; doce é o pensamento de que a humanidade ganhou um lugar entre os homens; doce é recordar o lugar de onde cada coração fraterno afirma com tanta força o que era, o que é e no que se pode transformar. Irmãos, entreguem-se por completo à felicidade que sentem; desta forma não esquecerão que são maçons…Que a inveja, a ambição e a calúnia sejam expulsas para sempre de nossos corações, e que a concórdia estreite os laços que constroem um puro amor fraternal….Equilibremos cada pesada carga com o peso do amor; então receberemos com dignidade a verdadeira luz que vem do oriente…”
A Lied “Enlacemos nossas mãos” é o canto do adeus. Nos fala de amor, de trabalho, de virtude e humanidade para terminar com a palavra “luz”. Curiosamente, essa Lied se converteria no hino austríaco e é o canto do adeus que os escoteiros pegaram da maçonaria britânica e que se canta formando um roda.
A vinculação de W. A. Mozart com este movimento filantrópico foi silenciado por sua mulher quando ele morreu; eram muitos os interesses que a impulsionaram a destruir parte de sua correspondência e a difundir a imagem de um homem arrependido que havia escrito o Réquiem para preparar-se piedosamente para a morte. Passaram muitos anos para que esse aspecto de Mozart voltasse a ver a luz. E mesmo que ainda haja muito para se conhecer, esta atitude comprometida de um homem que, sobre todas as coisas, amava, criava e vivia para a música, é a atitude de alguém selado com a sina dos gênios: fazer todo o bem possível em benefício da humanidade.

Sebastián Pérez

Autor

Revista Esfinge