Provavelmente muitos de vocês se perguntem qual a relação entre futebol e filosofia, e inclusive pode ser que os entedie este jogo e nem o considerem um esporte. Na verdade, minha intenção é apenas usar o futebol como ferramenta para falar de filosofia, e demonstrar que esta disciplina não é própria e exclusiva de uma minoria elitista, mas o contrário, a atividade filosófica é natural no ser humano.

A filosofia nos serve para descobrir paulatinamente as leis que regem a vida, e portanto, as leis que regem a nós mesmos. Por isso, a filosofia serve para conhecermos melhor a nós mesmos e a natureza. Esta possibilidade de conhecimento que nos oferece a filosofia é a chave para evitarmos sofrimentos desnecessários e construir uma autêntica fraternidade entre todos os seres humanos.

Futebol e vida

O que vemos hoje em dia em muitos estádios de futebol, independentemente da categoria da equipe, se afasta bastante do que entendemos por esporte, pois se transformou em uma ferramenta de manipulação da sociedade e, sobretudo, em fonte de maus exemplos, especialmente para os mais jovens.

Então, o que é o futebol? Um famoso treinador, que já não está mais na ativa, afirmou em uma entrevista que o futebol é “receber, controlar, correr e passar a bola”. E mesmo isto, se refletirmos um pouco – nos transformamos em filósofos conscientes por um instante! – é a vida. Recebemos a vida em nosso corpo ao nascer, vai se desenvolvendo, vamos crescendo, corremos com a vida, e logo, chega o momento em que devemos passar a vida, a bola, a outro companheiro. Realmente a vida não deixa de se mover nunca, passa de uns para os outros.

No futebol, há aqueles que não passam a bola, eles são chamados “fominhas”. Do mesmo modo, existem pessoas que se empenham em viver superficialmente e não colaborar com o resto da sociedade. Poderíamos dizer que os preocupa mais o status pessoal, a sede pelas homenagens, que o bem da própria equipe… Platão chamava isso de timocracia; que pouco nós avançamos!

O que podemos aprender do futebol

O futebol, como esporte, é um jogo de equipe, por isso, podemos aprender dele valores humanos, como o sentido do dever, a solidariedade, a responsabilidade e o compromisso moral, não apenas com os demais, se não também, com nós mesmos, e além disso podemos aprender também o valor da fidelidade.

Existem tradições em outros esportes, como por exemplo no rugby, que exemplificam muito bem tudo o que foi dito anteriormente. É costume em muitas equipes de rugby que, ao terminar a partida, a equipe visitante limpe o seu vestuário, independentemente se ganhou o jogo ou não, como demonstração de respeito ao rival.

No futebol, todos os jogadores de cada equipe entram na partida com uma estratégia: 4-4-2 losango, marcação homem a homem…; na vida acontece a mesma coisa. A filosofia nos ensina que nada acontece por acaso, se não que tudo acontece por necessidade, tudo obedece a uma lei, outra questão é que nós não conhecemos essa lei. Então dizemos: “Ah, isso acontece por casualidade”; ou no futebol diríamos: “o adversário teve sorte”.

Fazem muitos séculos – alguns historiadores dizem que no século VI a. C. -, na Grécia, nasceu a filosofia. Estes sábios gregos afirmavam que tudo o que acontece na natureza obedece a uma lei, e além disso mostravam que haviam acontecimentos que aconteciam com regularidade, e claro, se isso é assim, podemos prever acontecimentos!

Permita-me aqui a nota futeboleira; quando vemos um jogador de futebol cobrar uma falta direto ao gol do adversário, tratando de superar a barreira colocada pelo rival, e vemos como a bola descreve uma trajetória parabólica perfeita para se introduzir no gol do adversário, acreditam vocês que isso é azar? Não, há muito treinamento e esforço por detrás desse lançamento. Isto é algo que podemos aprender do futebol, a necessidade do esforço para conseguir nossos propósitos.

Sócrates dedicou grande parte da sua vida a investigar sobre as essências, se opondo aos sofistas, buscava a verdade. Buscava um denominador comum em conceitos tais como a verdade, a justiça, o bem…, para poder defini-los. Por exemplo, para chegar a definição da bondade, tratamos de procurar o que tem em comum todos os homens que chamamos de bondosos. Sócrates afirmava que, para empreender esta busca, é imprescindível reconhecer esta busca, é imprescindível reconhecer a nossa ignorância, despertar nossa consciência e, sobretudo, aprender a pensar por si mesmo – genial!- . Minha experiência de muitos anos como docente me diz que é mais difícil ensinar a alguém que acredita saber do que a alguém que reconhece a sua ignorância.

Fidelidade a algumas cores

Se perguntamos “o que é o bem?”, é provável que muita gente nos diga que o bem é um sentimento. Do mesmo modo, se perguntamos, por exemplo, a muitos torcedores do Deportivo de la Coruña porque são do “Depor”, irão nos dizer que o são por uma questão de sentimentos, que não se pode explicar com o que comumente chamamos razão. Bem, porém vamos aprofundar um pouco, se nos reunimos para conversar com esse torcedor, tomando um café, e melhor depois de uma vitória do time, talvez cheguemos a conclusão de que muitos torcedores do “Depor” o são por uma questão de fidelidade a uma cidade, aos pais que sempre torceram para esse time, fidelidade, um valor universal que hoje em dia até é criticado. Por isso já não se diz “sou fiel aos valores de tal equipe”. No entanto, escutamos “sou fã de…”. Observemos a palavra fã. Se trata de uma abreviatura de fanático, pessoa que defende uma crença ou uma opinião com paixão exagerada e sem respeitar as crenças e opiniões aos demais. Talvez agora compreendamos um pouco mais o que se passa em muitos estádios. Vemos como a linguagem retrata toda uma sociedade.

Porém voltamos as essências que buscava Sócrates. As essências, para nós, são muito difíceis de definir, porém podemos sentir, podemos sentir a beleza, por exemplo. Quando estamos diante de uma obra de “artística” nos perguntamos o que é isso?, sem sentir nada, o mais provável é que essa obra, de artística tenha muito pouco. O mesmo acontece quando dizemos que nosso time jogou bem, porém sentimos em nosso interior um convencimento que nos permite fazer essa afirmação.

Caos, ordem e futebol

Existem futebolistas que, com apenas a sua presença no campo, colocam ordem em sua equipe. Casos como o de Xavi Hernández são exemplos de jogadores que canalizam o “logos”, a ideia que propõem o técnico. Se diz que eles que “fazem jogar a equipe”; se me permitem agora o apontamento filosófico, diria que esses jogadores são os que mostram o caminho, colocam ordem no caos, pois não se trata apenas de fazer gols, se trata de como se joga. A alegria de um gol é momentânea, porém disfrutar de um jogo de uma equipe pode durar os noventa minutos da partida. Não se trata de viver mais ou menos, se trata de como se vive.

Todos os filósofos nos ensinaram que é imprescindível buscar na vida essa ordem para chegar a felicidade. Retornando a fidelidade, poderíamos falar de fidelidade com coerência entre pensamento, sentimento e ação, fidelidade é um ideal. É curioso como muitos times de futebol são fiéis a um sistema de jogo, não o alteram, jogam em essência, sempre igual, recordemos o Barcelona de Guardiola; e quando rompem essa fidelidade, costumam perder. Fazer o que devemos, ser fiel a nossos valores humanos, tem muito mais transcendência do que nós podemos imaginar, escolher entre um comportamento moral e outro imoral vai definir a solidez de nosso edifício interior, de nossa essência.

No início deste artigo dizia que o que vemos hoje em dia em muitos estádios de futebol se afasta bastante do que entendemos por esporte. Uma nuvem de interesses econômicos, pouco claros muitas vezes, invade praticamente todo o esporte. E o pior é que o mercantilismo abarca também as pessoas; se fala de comprar ou vender a tal futebolista, ou este jogador vale tantos milhões… dá a sensação de que estamos em um mercado de escravos. No futebol de hoje em dia o dinheiro o corrompeu de tal forma que as essências se perderam no ar, se perderam os valores clássicos desse esporte.

Do mesmo modo, o positivismo do século XIX levou o ser humano a focar a sua vida desde um ponto de vista utilitarista, provocando um desinteresse pela busca das essências, pobre Sócrates! Quer dizer, apenas nos preocupamos com os fatos, o resultado do jogo; e isso é certamente um problema, pois os acontecimentos mudam, e se não buscamos as causas desses acontecimentos, nunca iremos avançar.

Quero encerrar essa breve reflexão com um fato que aconteceu faz alguns anos em uma partida de futebol de uma liga de amadores na Galícia: um jogador possui a bola em sua área; de repente, escuta o som de um apito e acredita em o arbitro parou o jogo. Então ele para e segura a bola com a mão, o árbitro se dirige a ele e apita pênalti; o apito havia vindo da grade. A pena máxima não se pode reivindicar. Então aconteceu algo inacreditável, o atacante encarregado de chutar o pênalti fala em particular com o goleiro rival e lhe diz em que direção vai chutar a bola, para que ele possa pega-la. O goleiro não acredita nele, porém assim aconteceu. Tive a sorte de conversar com esse goleiro, um jovem de vinte anos. Ele comentava comigo que não era capaz de compreender os motivos desse comportamento do atacante rival; naquele momento eu o respondi, as vezes o silencio é a melhor resposta. Porém hoje eu diria, como demonstrava anteriormente, que o importante não é ganhar ou perder, o importante é como se joga. O importante é escolher uma forma de vida que nos permite construir um sólido edifício interior, com uma profunda base moral.  

Manuel Garcia M. Professor de matemática e filosofia

Autor

Hinaldo Breguez