Temos o prazer de entrevistar o antropólogo, filósofo e escritor Fernando Schwarz. Ele é um grande pesquisador das estruturas míticas e simbólicas das sociedades antigas e modernas. Especialista mundial no antigo Egito, dedicou também parte de sua obra ao conceito antropológico de “geografia sagrada”. Além disso, é presidente na França da Organização Internacional Nova Acrópole, escola de filosofia, cultura e voluntariado e é também o coordenador da instituição na Europa Ocidental.

Fátima Gordillo

Com mais de dezesseis livros publicados em francês e nove em língua espanhola, nos apresenta “O sagrado camuflado: a crise simbólica do mundo atual”, seu livro recém-publicado.

Até que ponto a perda de sentido simbólico tem a ver com a crise do mundo atual?

            A perda de sentido simbólico é a chave para compreender a crise que estamos vivendo, porque é uma crise de representação do mundo, não simplesmente uma crise econômica, social ou humana. O problema que temos é que não sabemos em que mundo estamos, não encontramos a forma de representá-lo, e o símbolo permite a representação das coisas.

A que se deve o desencanto do mundo atual e a falta de perspectiva do futuro?

O desencanto do mundo atual não vem de agora, é uma consequência de séculos de empobrecimento da representação da vida e da existência. Primeiro se empobreceu porque se transformou a natureza em uma coisa inanimada, pensando que se podia utilizá-la de qualquer maneira.

Logo, se perdeu o conceito de arte, como disse Gustavo Torner, “a arte morreu”, deixou de dar um exemplo e uma norma de tipo espiritual e simbólico no centro de nossas sociedades. O desencanto maior o assinalou Nietzsche quando falou do desencanto de Deus, porque todo o espiritual deixou de ser o centro das preocupações das sociedades humanas, e foi o material, o industrial, o funcional, o cotidiano, que se tornaram os interesses básicos. Isso pouco a pouco, foi reduzindo a visão da vida, e tudo ficou muito opaco, muito estreito, e isso desencantou o mundo.

O que é a imaginação e qual a função que ela tem no ser humano? Por que atualmente é como se não fosse importante?

            A imaginação é própria do homem, na realidade. Há animais que podem ter linguagem, que podem utilizar ferramentas, que inclusive, podem raciocinar um pouco. Porém, por outro lado, o sistema de representar o que não está, o ausente, e tornar presente, isso é imaginação. O primeiro evento fundamental que dá origem a imaginação na consciência humana é a morte. Quando somos capazes de representar o ausente, o morto está entre as consciências na vida da gente, ainda que não esteja em corpo presente; nesse momento a imaginação começou. Na realidade, a estamos usando todo o tempo. Todos os objetos, este copo, foi imaginado por alguém; na verdade, o que estamos vendo é a materialização da representação que alguém fez. Verdadeiramente, todos os produtos que estamos consumindo são petrificações da imaginação.

Qual a influência que teve a modernidade na ocultação do sagrado?

            A modernidade institui uma filosofia baseada na razão. E para a modernidade, tudo aquilo que a razão não possa conceitualizar, medir e quantificar são elementos que não formam parte da realidade. Portanto, pouco a pouco, a hipertrofia racional vai colocando uma a margem tudo o que é mito, tudo o que é símbolo, tudo o que parece fantasioso, tudo o que parece que não corresponde com a realidade. Então, lentamente, se foram ocultando estes esquemas, e se considerou que era algo mais irracional, algo para crianças ou para povos primitivos. Por isso, a modernidade tem sido elemento fundamental dentro do ocultamento do sagrado.

E agora a pergunta chave: o que é o sagrado? É algo religioso?

            O sagrado não pertence a nenhuma religião. Pode ser definido de duas maneiras, como o Karl-Otto, filósofo alemão do século XX, “é aquilo que é outro”. O sagrado é justamente o que não somos nós, o outro, o que está mais além do que vejo, o que é diferente, o que está em outra dimensão. O tema do outro é muito importante porque sem o outro eu não existo. Para que haja “eu”, tem que haver “você”.

            O sagrado gera a identidade. É algo do que nos esquecemos.  Por outro lado, o sagrado é o inviolável, o que não se pode transgredir, o que não se pode tocar. Cada sociedade elegeu elementos em seus comportamentos, em seus usos e costumes que não se podem tocar, esses elementos invioláveis são o sagrado.

            Por que somos capazes de fazer isso? Porque temos uma dimensão da consciência que nos permite compreender o que está mais além das aparências. Como dizia o “Pequeno Príncipe” de Exupèry: “O essencial é invisível aos olhos”. Essa dimensão essencial é o sagrado.

Como o homem de hoje pode recuperar o sagrado de forma consciente?

            Para recuperar o sagrado de forma consciente há que redescobrir nosso espaço interior. O sagrado não está fora. Podemos entender o sagrado porque existe uma dimensão interior que da profundidade e capacidade de visão mais além do imediato, mais além do funcional, mais além do material. Então, o sagrado é parte do nosso espaço, onde podemos colocar elementos como símbolos, como mitos e, sobretudo, uma consciência profunda. Sem essa consciência profunda que permite imaginar e representar o mundo de outra maneira, não podemos revalorizar o sagrado.

Por que precisamos dos mitos ou dos símbolos?

            Da mesma forma que poderíamos perguntar por que dormimos… Não apenas dormimos para que o corpo possa se regenerar e descansar, dormimos para regenerar a nossa psique, e o que é que nos permite regenerar a nossa psique? Os sonhos. Quando sonhamos utilizamos uma linguagem simbólica, como o demonstraram Freud e Jung. Nós nos recondicionamos para enfrentar um novo dia nos sacralizando.

            Os sonhos são compreensíveis se os entendemos com a dimensão simbólica. É outra maneira de viver, os mitos em uma sociedade permitem expandir a consciência, poder ser mais além do imediato.

            A saga de um país não é sua história cronológica, são seus grandes personagens. “El Cid” é um mito. A história do Cid na Espanha pode ser controversa, uma pessoa pode pensar uma coisa ou outra, porém essa história se transformou em um mito, que vai mais além dos fatos, porque está incorporando uma ideia de vida, uma aspiração do ser humano… Isso dilata a consciência e se pode ver o futuro, se pode compreender o passado e sentir o destino.

A queda da modernidade está permitindo, de alguma forma, dar um passo em direção ao sagrado?

            Sim, porque, de alguma maneira, o mito do progresso pelo progresso em si, pelo consumo, está caindo. Hoje sabemos que o dia de amanhã não será melhor que o anterior. As gerações duvidam sobre o seu futuro. A racionalidade hoje se entende como uma parte da realidade e se compreendeu que a imaginação pode influenciar sobre a racionalidade e mudar seu modo de ver as coisas. Não há uma separação entre conceito e racionalidade ou imaginação.

            Para poder criar, há que sair de onde se está, criar um ponto de fuga, descentralizar. O que é que nos permite descentralizar? A imaginação. O que é que nos permite logo explicar, compreender? A razão. Então não são opostos. Precisamos compreender a complementariedade entre os funcionamentos da nossa mente, que representa as coisas com imagens. E, portanto, que com uma imagem podemos ter muitos significados ao mesmo tempo que coexistem. Como o fogo, que pode ser a paixão, porém pode ser a sabedoria ou a luz.

            Em troca, um conceito é excludente: A não é B; B não é A. Não se entende que uma coisa pode significar outras coisas. Isso dividiu o mundo, nos fez uma linguagem binária, nossa tecnologia está baseada nisso. Não é ruim em si, porém lhe falta algo, lhe falta criatividade, lhe falta superação e falta liberdade.

Nos de um exemplo de algo sagrado que permaneceu em nosso tempo. Como se manteve, como podemos reconhecer?

            Os filmes, as grandes sagas como Star Wars, duraram quatro décadas. É impressionante porque em um mundo de alto consumo, onde tudo se desgasta muito rápido, há que fazer algo novo sempre. É uma espécie de Odisseia de Homero do século XXI. Se transformou na mitologia de várias gerações. É espantoso como muita gente se identifica com isso. Na França, o primeiro ministro atual é fã da saga Star Wars. É incrível como fecundou a imaginação de tantas gerações. Isto é próprio da dimensão mítica. Portanto, a resistência do sagrado em nossa vida cotidiana.

O que você quer nos apontar como conclusão?

            Eu penso que o desencantamento do mundo nos levou a essa opacidade. Temos que ver a possibilidade de re-encantar o mundo. Hoje em dia, há cada vez mais correntes de pensamento e grupos de trabalho tratando de dar uma nova dimensão ao que se faz, como uma magia onde se internacionalizam as diferentes dimensões da vida. Podemos re-encantar o mundo. Poder compreender que a natureza é algo vivente. Que a arte nos pode emocionar e inspirar. Que, de alguma maneira, esta dimensão fabulosa da imaginação pode nos dar uma possibilidade de ver um futuro novo e melhor.

Autor

Hinaldo Breguez