Escrito por Francisco Capacete González

Pierre Hadot é um dos historiadores mais importantes do pensamento antigo na atualidade. Seu profundo amor pela filosofia e pelo mundo antigo o fez notar as supostas inconsistências nos ensinamentos dos autores clássicos. É então que ele descobre que a filosofia no mundo antigo não é apenas um discurso teórico, mas uma reflexão compartilhada, o resultado de um modo especial de viver. Assim, os exercícios espirituais aparecem diante do olhar do professor Hadot como a peça que faltava para completar a imagem da filosofia antiga. As inconsistências do discurso desaparecem e em seu lugar brilha uma correspondência autêntica entre pensamento, sentimento e ação.

Ele reúne em seu livro – Exercícios Espirituais e Filosofia Antiga – uma compilação de exercícios espirituais de Filo de Alexandria, de inspiração estóico-platônica. A reconstrução das listas pelo autor nos remete a três tipos de exercícios:

1. Atenção, meditação e a lembrança do que é benéfico para nós.

2. Ler, ouvir, estudar e examinar em profundidade.

3. Autocontrole, cumprimento de deveres e indiferença às coisas indiferentes.

A atenção consiste em vigilância contínua e presença de espírito, uma autoconsciência sempre alerta, em constante tensão espiritual. O que permite dar uma resposta imediata aos eventos se os ensinamentos encontrados na meditação foram previamente assimilados.

A meditação assenta-se nos princípios fundamentais formulados em poucas palavras, para que possam ser facilmente acessados, sendo aplicáveis ​​com a segurança e a constância de um movimento reflexo. É preciso representar antecipadamente os problemas da existência: pobreza, sofrimento, morte. É preciso olhá-los de frente, lembrando que eles não são maus, pois não dependem de nós. Devem ser fórmulas persuasivas às quais se possa recorrer face a qualquer acontecimento, para controlar os impulsos de medo, raiva ou tristeza.

Esses exercícios de meditação e memorização requerem treinamento. É nesse momento que entram em cena os exercícios mais propriamente intelectuais elencados por Filo: ler, ouvir, estudar e aprofundar. É chegar a uma formação de caráter, de espírito, e não ficar na mera informação. Nosso filósofo cita Goethe para explicar a essência da leitura como exercício espiritual e aqui o reproduzimos: “As pessoas não sabem quanto tempo e esforço é preciso para aprender a ler. Levei oitenta anos para alcançá-lo e ainda não posso dizer se o fiz.” A meditação será alimentada pela leitura de frases de poetas e filósofos. Mas a leitura também pode incluir a explicação dos textos. E podem ser lidos ou ouvidos, ou podem ser ensinamentos dados por um professor. O estudo e o exame aprofundado, portanto, pressupõem a implementação de tais ensinamentos.

Pela manhã, as atividades que serão realizadas ao longo do dia deverão ser analisadas previamente, estabelecendo-se os princípios que as regerão. À noite, eles serão analisados ​​novamente para contabilizar quaisquer deficiências ou progresso. Os exercícios de meditação procuram dominar a fala interior para torná-la coerente, através do diálogo consigo ou com os outros, ou também recorrendo à escrita, dirigindo o pensamento de forma ordenada, conseguindo assim uma transformação completa da nossa representação do mundo, da nossa paisagem interior, mas ao mesmo tempo de nosso comportamento externo. Esses métodos revelam um enorme conhecimento do poder terapêutico da palavra.

Por fim, os exercícios práticos visam a criação de hábitos. Alguns são ainda de caráter muito interno, por exemplo, indiferença às coisas indiferentes, pois o sofrimento dos homens vem do medo das coisas que não deveriam ser temidas e do desejo das coisas que não deveriam ser desejadas. Outros são absolutamente cotidianos: praticar o autocontrole através do esforço de nos livrarmos de nossas vaidades, nossas paixões, preguiça, luxúria, gula e nos libertar de toda dor, tristeza, ódio ou raiva. Amar todos os homens livres.

Isso requer perseverança, constância. A prática diária desses exercícios espirituais revela nosso dever como seres humanos. Para o estoicismo, esse dever é ajudar a natureza humana a elevar a convivência humana, construindo uma sociedade mais justa. Esta é a essência da atividade espiritual, a universalidade. Exercitar-se individualmente sem levar em conta os outros, o mundo ou a natureza é vulgarizam e aviltar a prática espiritual. Pelo contrário, a perseverança diária no cumprimento de nosso dever permite-nos alcançar aquela característica que a antiga tradição chamava de grandeza de alma.

Bibliografia

Hadot, P. exercícios espirituais e filosofia antiga. Edições Siruela, 2006.

Hadot, P. O que é filosofia antiga? Fundo de Cultura Econômica, 1998.

Autor

Revista Esfinge