Escrito por José Carlos Fernández

Os Upanishads, com seus hinos, diálogos, poemas e explicações, constituem ao mesmo tempo o mais formidável e mais antigo tratado de filosofía que nos chegou, quase intacto.

Na realidade, a aprendizagem oral, de cor, durante mais de mil anos serviu, paradoxalmente, de conservação, uma vez que não foi confiada à escrita em materiais perecíveis, sendo necessário forçar as capacidades mentais para garantir a sua continuidade, como no famoso livro Fahrenheit 451.

A filosofia europeia, no século XIX, especialmente a alemã, ergueu-se, e também perdeu-se um pouco no idealismo subjetivo transcendental, bem auxiliado por esses textos.

De qualquer forma, quem abre a porta ao misterioso Oriente de forma decisiva e vai revolucionar o século XX é Helena Petrovna Blavatsky (1831-1891), e direta ou indiretamente, muitos dos conceitos da filosofia védica, incluido os Upanishads, são familiares a todo o mundo ocidental, que aliás o é cada vez menos.

Hoje quase todo mundo já ouviu e ainda conhece o significado básico de Karma, a lei de ação e reação; Dharma, a lei universal da Ordem, Verdade e Justiça; Maya, a ilusão da existência, que aparece como um sonho efêmero no meio da eternidade.

E cada vez mais são mais familiares os conceitos das três Gunas, ou qualidades da materia, que constituem, em diferentes proporções, tudo o que existe em todos os planos de consciência; Atma, o Eu verdadeiro e eterno; Brahman, o Absoluto, a realidade; Sat, Chit e Ananda (Ser, Consciência e Felicidade Perfeita, o Triplo Logos de Platão); Samsara, a peregrinação pela infinidade de vidas ou reencarnação, a sucessão de tudo que nasce, vive e morre; Buddhi, a luz do discernimento, sabedoria ou inteligencia pura; o AUM ou símbolo de Deus em sua expressão tripla (Brahma, que abre; Vishnu que preserva e Shiva que destrói, fecha e renova); Prakriti ou natureza material e Purusha, o espírito; Moksha ou liberação definitiva, equivalente ao Nirvana ou extinção do eu ilusório; Eka Advaita, o Um sem dois, e um longo etcetera.

Todos esses termos, cada vez mais comuns em nossa língua, nasceram nos Vedas e nos Upanishads e foram o esqueleto filosófico e espiritual da cultura da Índia por pelo menos três mil anos. Logicamente, muitos desses conceitos sofreram transformações a partir dos hinos védicos e durante o hinduísmo, ou ainda matizes diferentes no jainismo e no budismo, mas não deixaram de ser conceitos básicos e definitivos, quase como o são os números na matemática.

E, no entanto, sua linguagem não é tão formal (esotéricamente o é, pois é matemática). Os filósofos que os utilizaram não estavam apegados, como é o caso hoje com a filosofia ocidental em grande medida, a redes de palavras puramente abstratas e que não significam nada, e nem há como referi-las à natureza e à vida. Todos esses termos, desde seu significado em sânscrito até seu uso em diferentes contextos, referem-se a imagens mentais muito claras, símbolos ou metáforas do que indicam no céu da ideação pura. Mas, além disso, reinam em suas explicações a alegoria, a comparação, a analogia, que, como nos lembra H. P. Blavatsky, é a chave que nos permite abrir as portas do mistério: "Assim como é acima, é abaixo".

Por exemplo, as Três Gunas são chamadas de "a cabra tricolor" ou simplesmente listadas nos Upanishads como Vermelho (Rajas-excesso), Preto (Tamas-defeito, inércia) e Branco (Satva- justo meio), curiosamente as três cores da alquimia, alusivas à luz e à energia aprisionadas na materia, como no carvão (Tamas), sua dolorosa libertação convertida através do fogo (Rajas),pura, feliz, já sem correntes, banhando com sua alegría tudo o que toca e concedendo a justa medida (Satva). Os três símbolos do estado em que tudo se encontra, com diferentes proporções dessas três qualidades. Da mesma forma que a infinidade de cores é traçada com as diferentes proporções das três cores primárias, a infinidade de qualidades, ações ações, objetos, pensamentos, emoções, etc. é medida e nasce das diferentes proporções dessas Três Gunas. Assim também o Trimurti ,ou Três Deuses, estão associados a elas: Shiva, deus dos ascetas (Tamas), Brahma, o criador do mundo (Rajas) e Vishnu, o Preservador, a bondade de Satva. Três Deuses que, como diz o Upanishad, foram e são um, e se tornam 8, 11, depois 12 e depois infinitamente.

O conceito de Purusha é traduzido como “espírito”, que provoca na matéria (Prakriti) todas as suas transformações evolutivas, como uma dançarina diante de quem a olha. Como nos lembra A Doutrina Secreta, Purusha ou Pensamento Divino, é a condição de sujeito de existência, e Prakriti é o objeto, ou condição de suporte. Purusha é coxo e Prakriti é cego, então eles devem agir juntos, e eles não são nada, na vida manifestada, um sem o outro. E ainda, em sânscrito, Purusha significa 'homem, macho', muito semelhante a Parashu (Machado de Duplo Fio), como no mito grego em que Ares Dionísio constrói o universo com movimentos espirais, cavando no caos da matéria primordial.
 
Purusha, nos Vedas, é representado, em um hino, como um gigante de mil cabeças e mil pés que é sacrificado e desmembrado para dar nascimento ao mundo, como o gigante Ymir na religião escandinava (que também é indoariano). Na realidade, significa o mesmo que o Adam Kadmon da Cabala, é o Homem Celeste ou a Pirâmide de Arquétipos ou Pensamentos Divinos, eternos, que tomam forma no universo que nasce, vive e morre. Mas a imagem é muito gráfica. Da mesma forma que com o DNA, que identifica o ser humano e as substâncias químicas que o geram, poderíamos gerar o que existe no universo e vive na natureza (senão tudo, uma grande parte), as unidades ou estruturas formais que permitiram que se manifestasse o ser humano, microcosmo, são as mesmas que abrangem o infinito do cosmos. Como no filme Missão para Marte, aliás excelente, em que o DNA de um único marciano teria gerado, em uma Terra preparada quimicamente, toda a natureza viva da Terra.
 
Buddhi, que em sânscrito significa 'luz', é a luz espiritual, o discernimento, a inteligência que permite não nos perder no labirinto da vida, e não sucumbir às suas dificuldades. É a voz interior ou a consciência que, para além do nosso raciocínio, verdadeiro ou falso, sempre nos aponta o caminho como uma bússola, independentemente se o seguimos ou não.
 
No Taitiriya Upanishad, Buddhi é comparado a um pássaro, no qual sraddha (fé firme, determinação) é sua cabeça, a asa direita é a Ordem Cósmica (rita), a asa esquerda é a Verdade (sathya), o próprio corpo. é mahat (literalmente 'grande', é o princípio da Consciência Universal ou verdadeira natureza do Ser) e sua cauda é ioga (que significa 'união', mas aqui deve significar a sujeição dos poderes inferiores). Que discurso filosófico em um único símbolo! Budhi é o cisne dentro da alma, ou a águia de nossa verdadeira natureza na gaiola do espaço e do tempo e das limitações do karma, a alma divina. Nos Upanishads encontramos o jogo de palabras onde, ao se repetir sucessivamente Sah (Ele, isto é, Brahman) e Aham ('Eu'), dá-se origem à palavra Hamsa, cisne, da eternidade, e que gera o Hamsa gayatri, que é traduzido:

Oh mestre! Que possamos conhecê-lo!
Que possamos meditar no Mestre Supremo!
Que este Mestre nos conduza!

Este Mestre é o Eu Divino, Atma-budhi irradiando sua luz do coração, e vivificado na presença daquele que nos guia no caminho, com quem ele chega a se identificar misteriosamente.

E se Budhi é a luz divina, quem a irradia é Atma, o Eu interno e último, o centro de nossa existência, além de toda separatividade e de todas as sombras, o "Um-apenas-Um", que é ao mesmo tempo a próprio raiz do universo (Brahman). O discurso do Bhagavad Gita sobre o Atma é sublime: nem o fogo, nem a água, nem as armas de metal ou o vento podem feri-lo, e está além de qualquer elogio ou crítica, de qualquer definição ou qualidade. No Mundaka Upanishad é dito sobre ele: “Os olhos não podem ver; a mente não pode entendê-lo. O ser imortal não tem casta, raça, olhos, ouvidos, mãos e pés. Os sábios dizem que este ser é infinito no grande e no pequeno, eterno e imutável, a fonte da vida.”

E sobre a vida como uma corrente, que Platão chama de devir, a sucessão de momentos, em cujas ondas tudo nasce, vive, se desenvolve e morre; rio que o budismo diz que é necessário cruzar no barco de uma mente firme e sem dúvidas, até chegar à outra margem, o Nirvana; este fluxo ou sucessão de presentes sem realidade é chamado nos Upanishads de “Samsara” E, nesses mesmos livros, é comparada a uma roda, a Roda da Vida (já vemos onde nasceram símbolos comuns em mais de três mil anos de história e em todo o mundo).

“Este vasto universo é uma roda, a roda de Brahman. Nele todas as criaturas estão sujeitas ao nascimento, morte e renascimento. Dá voltas e mais voltas e nunca se detém”.(Svetasvatara Upanishad).

Como a roda do Sol, em cuja luz tudo nasce, vive e morre, ou a roda da galáxia, a nossa, a Via Láctea, que, segundo nossa cosmologia gira a cada 220 milhões de anos, arrastando uma infinidade estrelas que é um simples piscar da eternidade, como tudo o que vive neste Samsara.
 

Autor

Revista Esfinge