Por Marcelo Silveira

Quem ama o vinho pode apreciá-lo, quem não o ama somente pode extrair prazeres ou dissabores dele. Assim como é o vinho, é a música.

Ao falar de apreciação musical logo pensamos em um conjunto de dicas ou técnicas que nos permitam uma correta compreensão da música: conhecimento histórico sobre o compositor e sua época, instrumentos, timbre, melodia, harmonia, ritmo…, porém, para além destes elementos que são, de maneira geral, físicos, existem outros elementos tanto ou mais importantes.

Seguem aqui quatro breves notas sobre a apreciação musical desde uma perspectiva que parece mais adequada, porque mais humana, e que com pouco esforço podem se estender à apreciação das Obras de Arte como um todo.

Primeira nota

A música é um ser vivo, e é com um ser vivo que temos de nos relacionar ao ouvi-la. Se você ouve música apenas por distração, diversão, ou porque ela te faz bem, então sua relação com ela é como a de alguém que se relaciona contigo apenas por distração, diversão ou porque lhe faz bem…

Que tipo de sentimentos são possíveis quando alguém se relaciona conosco buscando apenas prazer ou distração? Não há compromisso, nem entrega, nem amor. E sem estes elementos básicos a relação é bestial, muito distante de uma relação própria de um ser humano.

Leve sempre em consideração que a Música é a linguagem mais sutil ao alcance da compreensão humana, e talvez seja a mais densa com a qual os deuses podem se comunicar. Logo, ouvir música está mais relacionado com adentrar a um templo do que a um lugar profano.

Segunda nota

Para apreciar um ser é preciso amar este ser. Leonardo da Vinci já havia notado, com a elegância de um poeta e a precisão de um gênio, que “quanto mais se conhece, mais se aprecia”.

O conhecimento pode ter origem em nossa curiosidade, mas isto se dá apenas em nossas etapas infantis, posto que a curiosidade é uma espécie de “motor de arranque” que nos leva à busca pelo conhecimento. No entanto, uma vez iniciada a jornada de busca pelo conhecimento, necessitamos silenciar a curiosidade de nossa mente, posto que sem silêncio não é possível concentrar-se para aprender.

Não há apreciação sem conhecimento e não há conhecimento sem amor. Porque, silenciada a curiosidade, o que poderia continuar nos movendo em busca do conhecimento? Chamemos Amor ao motor de busca perpétua do ser humano. Por este motivo não há a mínima possibilidade de se apreciar uma música sem amá-la.

Nossos sentimentos podem parecer surgir de maneira ocasional ou voluptuária, mas a verdade é que os verdadeiros sentimentos partem de uma inicial identificação, e depois precisam ser construídos. Assim é na amizade, assim é no casamento, assim é na música.

Portanto, uma dica fundamental é ouvir aquelas músicas que, por algum motivo desconhecido, nos atraem sobremaneira. E este motivo não deve ser explicável. Se for explicável, provavelmente a explicação será que a música simplesmente nos agrada. Existem músicas belíssimas que possivelmente não nos agradarão.

O prelúdio do Tristão e Isolda de Wagner, para citar um exemplo, é impossível de agradar aos ouvidos. Isso porque a música foi totalmente composta em acordes dissonantes, não havendo em nenhum momento um único acorde consonante. Isso significa que nossos ouvidos naturalmente vão estranhar esta música todas as vezes que a ouvirmos. Mas o gênio de Wagner conseguiu com este artifício, aumentando e diminuindo a tensão dos acordes, criar uma obra prima que nos ensina e demonstra que na natureza tudo está em tensão constante, e que quando esta tensão é aliviada temos a sensação de que as coisas se tornam harmônicas e agradáveis, enquanto em essência continuam sendo tensas e desagradáveis. Isso significa muito e traz consigo um profundo simbolismo. Enfim, são onze minutos de música que transfiguram uma eternidade de mistérios.

Terceira nota

Não tem a ver com o que você sente, mas com o que ela diz. Se amamos alguém de verdade, interessa muito menos o que estamos sentindo e muito mais o que este alguém está nos transmitindo, seja como seja.

Um dos maiores erros ao ouvir música é perguntar-nos o que ela nos provoca, quais os sentimentos e imagens que surgem em nós, etc. Isso pode ser válido como exercício de imaginação, mas jamais como apreciação.

Para ouvir o que uma música tem a nos dizer, o máximo exercício que precisamos é o de imaginar a música personificada ante nós, e perguntar para ela em completa humildade e sinceridade: “o que você quer me dizer?” E assim como uma primeira leitura de um texto não é suficiente para que possamos compreendê-lo por completo, também uma primeira e única escuta não será suficiente para compreender a mensagem de uma música.

Então, ouvir e ouvir inúmeras vezes a mesma música tem muito mais valor que ouvir sequencialmente um grande número de músicas diferentes. Somente as músicas de Bach e Mozart que temos acesso hoje em dia atingem as significativas durações de 150 horas do primeiro e 170 horas do segundo, totalizando aproximadamente 320 horas de música. E estamos falando de apenas dois compositores. Para ouvir toda a obra precisaríamos de praticamente todo um ano com dedicação de uma hora diária. Isso nos leva a entender que não teremos tempo nesta vida para ouvir tudo de todos os compositores que realmente valem a pena. Assim sendo, e partindo do princípio de alguém que quer realmente apreciar a música, reconheçamos que quantidade não é qualidade, e que compreender uma única música em sua essência é muito mais válido que ouvir horas e horas de músicas diferentes sem aproximar-se de sua compreensão.

Quarta nota

A alma é mais importante que o corpo. Tudo o que ouvimos com nossos ouvidos físicos é uma expressão de matéria, ainda que sutil. A música só existe em função do silêncio, e nada mais é que o encaixe sonoro de diferentes notas entre um e outro espaço de silêncio.

Se antes ouvíamos o som, agora aprendamos a ouvir o silêncio da música, para em seguida aprender a ouvir som e silêncio dentro do mesmo amplexo, porque na música o som e o silêncio caminham abraçados, e muitas vezes ocupam o mesmo lugar.

Todo o manifestado está a serviço de uma inteligência espiritual não manifestada. Assim é a relação com nosso corpo e nossa alma, e assim também é com a música, que possui corpo e alma. O que ouvimos é o corpo…

E quando migrarmos de uma música para outra, perceberemos de maneira efetiva que, embora a forma possa mudar significativamente, a ideia e a inspiração são as mesmas e estão sempre presentes. A lamparina se quebra, a chama não se apaga.

A música é um ser vivo, respeite-a! E por lei natural de compensação, ela também te respeitará, e do respeito surgirá a confiança, da confiança a transmissão do segredo, e do segredo, o mergulho em seu Mistério.

Autor

Editor Revista Esfinge