Escrito por Lola Fernández

Quando ouvimos falar a palavra mito, rapidamente pensamos na Antiguidade, em um tempo passado que pouco tem a ver com nós agora, e com a nossa época. Além disso, vulgarmente, o entendemos como uma enganação, uma crença falsa, algo que não possui um significado real, como uma mentira. Porém, a palavra mito possui outros significados muito profundos e está mais ligado a realidade atual do que pensamos.

Os mitos acumularam tanto conhecimento, tanta experiência, tanta sabedoria ao longo de milhares de anos que, de alguma forma, são a porta através da qual “o sagrado entra no mundo” (Mircea Eliade). As pessoas que os criaram estavam, no mais profundo de si mesmos, pelo fato de serem humanos, em contato com o Divino.

Os mitos são modelos para o homem e, se pararmos e prestarmos atenção, poderíamos retirar deles não só formas de agir, mas também forças para agir. É o caso do mito do herói. Mas os primeiros mitos que a Humanidade criou têm a ver com a criação do mundo a partir do caos. E é disso que vêm os demais.

Na Antiguidade, existia o costume de relembrar o mito através de ritos e celebrações. Era a forma de torná-lo presente, de revivê-lo, de recordá-lo e, através de cerimônias, afastar-se do cotidiano para entrar em um tempo e um espaço sagrados nos quais o homem se colocava perante o mistério da vida e o cosmos.

Tudo mudou. Ainda assim, chegaram até nós nos dias de hoje alguns mitos e celebrações rituais, através de diversos meios, desde a época do Renascimento e, posteriormente, através do Romantismo alemão, dentre outros, quando as tradições populares e orais voltaram a ser fonte de inspiração para filósofos e poetas. Hoje em dia perduram, principalmente, os ritos relacionados à natureza, como a chegada do verão na festa de São João, ou o início de um novo ciclo da luz do Sol no dia do nascimento de Jesus.

Mito e filosofia

A Filosofia e o mito andaram de mãos dadas ao longo de uma parte da história. Os mitos deixaram sua influência nos primórdios da filosofia. O interesse em buscar a origem do ser e de todas as coisas que existem e, com ele, as primeiras especulações filosóficas derivaram das mitologias.

Nem Sócrates nem Platão abandonam o mito. Platão, como sabemos (graças ao mito da caverna), o utiliza para dar explicações cheias de imagens, escolhe o discurso mítico como mais sugestivo e adequado para falar de coisas profundas. Através do mito, o invisível e incompreensível se torna mais compreensível para o homem.

O mito não procura encontrar a verdade completa nem a expressar na sua totalidade, pois não é possível. Ao invés disso, procura sugerir algo dela através de uma mensagem que deve ser interpretada e que pode continuar se desenvolvendo e encontrando novos ecos dentro de nós.

Acontece que o mito e a razão não são inimigos. São perfeitamente complementares. O mito, com sua linguagem simbólica, pode continuar expressando quando a razão já não pode seguir em frente.

O mito não é, portanto, nem falso nem infantil. Expressa verdades eternas com uma linguagem de símbolos direcionada não só à razão, mas também ao sentimento e o espirito.

É por isso que o pensamento mítico conseguiu sobreviver (mesmo que diminuído, alterado e camuflado) à crítica devastadora de um racionalismo feroz, que não enxergava nos antigos relatos nem na imaginação humana nenhuma fonte de verdade. Hoje em dia perduram em muitas personagens de histórias em quadrinhos e livros, como a saga de Harry Potter ou O Senhor dos Anéis, ou até mesmo em filmes como Star Wars, que relatam (assim como o Mahabharata ou o mito do Rei Arthur) a luta do bem, da parte mais nobre do ser humano, contra o mal, seu lado sombrio. Este relato é universal e atemporal, pois ambas forças não são externas ao homem, senão que estão dentro dele.

Em todos eles, é narrada a jornada do herói e as etapas pelas quais ele passa na sua viagem vital:

  • O medo e a rejeição da aventura, quando ainda não é um herói.
  • Seu encontro com um Mestre, que lhe proporciona técnicas de luta e formação. Que o inicia.
  • As provas que deve superar. Sua luta contra a tentação.
  • A vitória e, finalmente, o retorno ao cotidiano como vencedor dos dois mundos.

E este é o processo que todos nós vivemos quanto não evitamos a luta permanente que a vida nos apresenta.

Porém, hoje em dia, a superficialidade nos invade. É difícil falar destas questões. Evitamos nos questionar sobre como vivemos, evitamos nos fazer questionamentos vitais e imaginar, no meio da tendência geral, outras formas de viver que possam nos fazer felizes e deixar mais felizes àqueles ao nosso redor. O dinheiro, a fama, o sucesso material são os maiores ídolos. O espaço para o sagrado é reduzido, ou até mesmo inexistente, e não conseguimos alcançá-lo nem com rituais, cerimônias ou qualquer outro meio. Por isso, hoje torna-se necessário, mais do que nunca, recuperar a mensagem contida no mito do herói. É um modelo que devemos imitar pelos valores e virtudes que defende, pelo seu desejo pelo bem, por se elevar acima do homem comum, em direção às características da divindade.

Mito e atualidade

Para viver uma vida com sentido, precisamos não só da razão, pois o homem não é só razão. Precisamos recuperar o sentido heroico da vida, ver a nós mesmos como heróis, que somos necessariamente chamados a ser ao longo da nossa vida.

Viver é um desafio, um desafio enorme, para o qual precisamos utilizar todas as nossas forças; temos que encarar, como dizia Miguel Hernández, a liberdade, o amor e a morte. E não existe universidade que nos possa ensinar, ou diploma que nos certifique de que estamos vivendo bem. O mito do herói, com suas características a serem imitadas, nos mostra o caminho. Ele nos impulsiona a sermos protagonistas, e não só espectadores.

Este é o sentido da filosofia como via prática. A filosofia é a busca pela verdade, e um caminho de evolução pessoal. Ser filósofo não é estudar, sem mais nem menos, as intrincadas teorias dos antigos pensadores, como muita gente costuma pensar, em um mundo que está se esquecendo dos pontos essenciais. Ser filósofo é muito mais difícil, mas também muito mais emocionante. É colocar no lugar certo o que pensamos, o que sentimos e o que fazemos. É encontrar o que procuramos na vida. É saber onde queremos chegar, e ter um bom projeto de vida. É, portanto, algo prático e aplicável ao dia-a-dia. E, para isso, é necessário ter ideias claras e certezas confiáveis nas quais nos apoiar.

Ser filósofo é estar apaixonado pela verdade, pela sabedoria e, assim como alguém apaixonado, possuir toda a paixão e a força para alcançar os objetivos que a gente se propôs. A vida se torna, desta forma, um exercício de preparo e melhoria, de evolução contínua. Uma aventura.

E, apesar das tendências gerais da nossa sociedade, dentro de cada um de nós existe um herói em potencial, que enfrenta com coragem as dificuldades da vida, que aprende com os seus erros, que não desiste, que tenta viver de maneira harmônica com a natureza, procurando a divindade que existe nela, sem ferir ninguém, sempre em um processo de mudança contínua, e levando a filosofia como a luz que ilumina o seu caminho.

Somos chamados a unir o que nos é dado ao vir ao mundo, corpo, emoções, inteligência, consciência, intuição, para criar uma vida com um sentido. E não é fácil. Muitos se perdem pelo caminho. Mas essa é … a tarefa do herói.

Autor

Hinaldo Breguez