A obra de Leonardo tem em toda diversidade de suas manifestações um tom harmônico espiritual da arte musical, o mais sutil e inapreensível de todos, como as “nuances” de sua pintura e suas atmosferas etéreas de luz e sombras.

De todos os personagens protagonistas do Renascimento Italiano que, certamente, foram muitos e de grande valor, Leonardo da Vinci é sem dúvida o mais conhecido popularmente e de quem mais se escreveu e se falou, tomando-o sempre como modelo, como a síntese do gênio e do artista, do homem universal que encarnou o ideal renascentista.

Sua vida começa no ano de 1452, quando os turcos tomam Bizâncio, e termina em 1519, pouco antes de Roma ser saqueada pelas tropas de Carlos V. É considerado o mais importante e fecundo do Renascimento Italiano. E segundo Walter Pater, é “a encarnação do sonho antigo e o símbolo da Idade Moderna”.

São muitas suas facetas criativas e sua obra merece ser reinterpretada permanentemente para podermos nos aprofundar, sobretudo, no desenvolvimento e evolução de seu pensamento filosófico, exemplo único de fertilidade e liberdade de pensamento do espírito renascentista dessa época deslumbrante que foi o período florentino sob a tutela dos Médicis. Lá inicia Leonardo sua educação na famosa oficina de Andrea Verrocchio, aprendendo não só desenho e pintura, pois também adquire formação em elevações de superfícies planas, a escultura em pedra e a fundição do bronze, aprendendo também a construir canais, fortificações e todo tipo de artefatos.

Adquiriu rapidamente uma vasta cultura e inspirado por sua infinita imaginação, resolveu representar em suas obras a alma das coisas. Queria encontrar essa “força” interna que as movia, “essa potência invisível, essa virtude espiritual” como chamava, que era o impulso e poder de organização e evolução das formas dentro da extraordinária harmonia de suas leis matemáticas, que tanto admirava e tratava sempre de respeitar impregnando tudo o que fazia. Embora tenha tocado todos os ramos da arte, suas preferidas foram sempre a música e a pintura, que considerava como irmãs. É precisamente uma dessas suas facetas, a musical, que hoje quero dedicar meu estudo, por ser a mais esquecida, apesar de constar em seus êxitos como cantor e virtuoso na Lira e no Alaúde. Foi também um hábil construtor de instrumentos com os quais acompanhava seus poemas e improvisava canções.

Leonardo Músico

Infelizmente não se encontrou nenhuma das composições musicais que Leonardo criou, nem sabemos sequer se chegou a deixar escrita alguma das muitas que improvisava, mas nos consta que foi músico na corte dos Sforza ao mesmo tempo em que esteve a serviço de Ludovico, o Mouro, e que, quando chegou a Milão, já dominava à perfeição a lira e o alaúde. É provável que Leonardo tenha aprendido a tocar estes instrumentos de ouvido, devido ao seu interesse e sua boa voz para cantar, e que ele o fizera simplesmente praticando sozinho ou com seus amigos, sem um professor conhecido, ainda que seja possível que um destes companheiros da juventude, Atalante Migliorotti, cantor e músico de profissão, pudesse ter-lhe ensinado as bases da teoria musical durante sua estadia em Florença. Sabe-se ao certo que entre seus livros preferidos estava “A arte da música”, um completo tratado escrito em 1035 por Guido d’Arezzo, um beneditino erudito muito famoso como teórico musical, ao qual se atribuem numerosas inovações na escrita medieval, que foram a origem formal de nossas partituras clássicas. É atribuída a Guido, também, a criação das claves e das quatro linhas da pauta da época. Guido valorizou os espaços compreendidos entre elas; aperfeiçoou os sistemas de cores das notas e impulsionou o ensino do canto, assim como um tímido início de polifonia mediante o uso das harmonias básicas. Estudou no monocórdio inventado por Pitágoras; foi também quem deu nome às seis primeiras notas da escala, o chamado “hexacorde”, que corresponde a nossa oitava atual, utilizando para isso as sílabas iniciais dos versos do célebre hino em latim dedicado a São João Batista, “queant laxis Resonare fibris”.(*)

Outro grande músico contemporâneo de Leonardo quando viveu em Milão foi o holandês Josquin des Prés (1450-1521), discípulo de Ockenghem e viajante constante entre Flandres e Itália, onde passava temporadas integrando-se nos grupos de humanistas, poetas, oradores, historiadores, filólogos, pintores, arquitetos, músicos e geômetras que se reuniam em Milão na corte dos Sforza, onde Ludovico, o Mouro, rivalizava com Lorenzo, o Magnífico. Tanto Luca Pacioli, o geômetra investigador da “divina proporção”, como Josquin des Prés, o compositor mais célebre e inovador da primeira metade do século XVI, impactaram Leonardo com suas obras, que colaborou com eles nestes anos de sua estada em Milão, ilustrando com seus desenhos dos sólidos platônicos a obra de Pacioli e organizando espetáculos e celebrações musicais públicas de acordo com o estilo dos homens renascentistas.

Com Josquin des Prés a música ganha uma força expressiva que até então não tinha. Impregnado do espírito humanista italiano, sua preferência em lugar do estilo flamenco, que considera de grande refinamento, mas um pouco artificial, pois queria manifestar a sabedoria contraditória do autor que se via forçado a fazer uma música puramente técnica, carente de emoção e afetividade humana que havia nas novas tendências renascentistas, Josquin fica seduzido pelo encanto do estilo italiano e supera o caráter medieval da música baseada em regras abstratas, deixando fluir sua imaginação com absoluta liberdade. Sua obra tem uma grande elegância cantável, pois nela se começa também a prestar atenção ao texto poético, que se canta buscando representar seu sentido mediante um simbolismo musical.

Em 1489, devido a boda de Isabel de Aragão, princesa de Nápoles, com o sobrinho de Ludovico, o Mouro, organizou-se em Milão um espetáculo chamado “Paraíso”, dirigido e encenado por Leonardo. Era uma representação do céu, em forma de uma esfera gigante; cada planeta, representado pelo deus que recebe seu nome, dava uma volta inteira e, chegando diante da noiva, cantava uns versos composto por Bellincioni; a música, segundo descoberta recente, era o “Fama Malum” de Josquin des Prés. Esta deslumbrante obra, colocada em cena com a arte e a genialidade de Leonardo, pode ser considerada, mesmo um século antes de “Orfeu” de Monteverdi, como a primeira ópera moderna, com folhetim de Bellincione e música de Josquin. O aspecto de Leonardo como cenógrafo, o qual também beneficiou mais tarde o rei da França, Francisco I, é precursor das grandes montagens que imaginaria séculos mais tarde Richard Wagner para seus espetáculos na Festpielhaus de Bayreuth. Como era um maravilhoso inventor e detentor de grande elegância, sobretudo nas diversões de teatro, e como cantava admiravelmente acompanhado de sua lira, agradava a todos os príncipes.

De sua posição como músico, engenheiro e pintor ducal, Leonardo dispõe, em Milão, de meios suficientes para cumprir seus mais ambiciosos projetos de “ordenar a mão”, como ele mesmo dizia “tudo o que o olho e a mente imaginam” não se põe limites. Tudo o que tocava transformava em beleza e eficácia, tanto a parede do refeitório de Santa Maria onde pintou sua famosa Última Ceia, como a estátua equestre de Francisco Sforza que não chegou a fundir em bronze e cujo prodigioso modelo em gesso, segundo os que tiveram o privilégio de admirar, foi destruído pelos franceses em 1499; ou como qualquer comemoração improvisada para as celebrações que o Mouro tanto gostava em que Leonardo sempre se distinguia como principal organizador, músico e cantor.

Convém recordar que o primeiro contato de Leonardo com Ludovico, o Mouro, foi curiosamente através da música. “Tinha trinta anos quando Lorenzo, o Magnífico, o enviou ao duque de Milão acompanhado por Atalante de Migliorotti para oferecer-lhe uma lira”, conforme um de seus biógrafos. Leonardo teve uma entrada espetacular na corte, em companhia de seu amigo, presenteando o duque, grande admirador da música, com uma lira de prata que ele mesmo havia desenhado em forma de cabeça de cavalo, conseguindo uma musicalidade e ressonância perfeitas. Ludovico, entusiasmado pelo precioso presente, convocou rapidamente um torneio musical e Leonardo, que possuía uma voz profunda e maravilhosamente timbrada, cantou improvisando seus próprios poemas e acompanhado da famosa lira deixando, em segundo plano, o resto dos músicos que participavam do torneio. Desde então, e depois de conhecer suas múltiplas habilidades e sua inteligente arte para conversar, o duque sentiu por ele uma admiração sem limites e uma fidelidade por seu hóspede que durou até sua morte.

A alma da música

Já sabemos, como recordou Guido d’Arezzo em suas obras sobre a teoria da música, que a correspondência entre duração e intervalo musical é base para a filosofia pitagórica, pois foi Pitágoras quem trouxe as notas musicais de diferentes durações de uma corda em seu monocórdio, estabelecendo as harmonias das leis matemáticas e as proporções áureas que regem nossa música ocidental, tornando a música para a cultura grega a essência da filosofia. Assim entendeu Leonardo e assim haviam entendido os grandes sábios do Egito, na cultura onde beberam os gregos. Dizia M. Ficino em uma carta a seu amigo Francesco Musano: “não te surpreenda, Francesco, de que combinemos a medicina e a lira com o estudo da teologia (…) O corpo é na verdade curado pelos remédios da medicina, mas a alma, que é vapor aéreo do sangue e ligação entre corpo e espírito, se ajusta e alimenta por odores, sons e canções (…) Para os sacerdotes egípcios, medicina, música e mistérios eram um e o mesmo estudo. Espero podermos um dia ter o domínio desta arte natural egípcia com tanto êxito!”

Com seu interesse pela psicologia humana, Leonardo transmitiu em sua obra todo o humanismo renascentista, materializando em suas formas o Discurso sobre a Dignidade do Homem de Pico de La Mirándola, verdadeiro manifesto do Renascimento. Pela primeira vez desde os gregos a arte se propõe a representar a expressão humana: o estado de ânimo da pessoa é motivo de arte, e tal reconhecimento do valor do indivíduo supõe uma ruptura com o mundo medieval cristão, no qual toda expressão artística, sobretudo a pintura e a música, estavam a serviço de um propósito simbólico religioso e seus temas eram, quando incluíam figuras humanas, alegorias despersonalizadas; belíssimas algumas, sim, como podiam chegar a ser o canto gregoriano e as pinturas de Fra Angélico, mas carentes das paixões que agitam o ser humano. Foi Leonardo quem deu vida à pintura com a “magia da expressão”, e espero que os músicos de hoje trabalhem de novo com aquela profundidade, respeito e profissionalismo com que o fez nosso gênio, para reencontrar a alma da música pois, como afirmava São Isidoro em suas Etimologias, um conhecimento perfeito é impossível sem a música, já que nada existe sem ela; porque até o Universo foi organizado com uma certa harmonia sonora, e os mesmos céus giram em torno dessa harmonia.

(*) Ut queant laxis, Resonare fibris, Mira gestorum, Famuli tuorum, Solve polluti, Labii reatum, Oh Sante Iohannes; Para que os teus servos possam cantar as maravilhas dos teus atos admiráveis, absolve as faltas dos seus lábios impuros, Oh São João; o ut foi modificado posteriormente para a nota dó. Nota do revisor

Bibliografia

Luis Racionero: El Desarrollo de Leonardo da Vinci. Ed. Plaza & Janés. Barcelona 1986.

Michael White: Leonardo, El Primer Científico. Plaza & Janés Editores, S.A. Barcelona 2001.

Diccionario Oxford de la Música. Edhasa/Hermes/Sudamericana. Buenos Aires 1964.

  1. Torres, A. Gallego y L. Álvarez: Música y Sociedad. Real Musical, S.A. Editores. Madrid 1976.

María Angustias Carrillo de Albornoz

Autor

Revista Esfinge