A escravidão sempre acompanhou a humanidade. Ao menos desde que a história é registrada. Só no século XIX começa a se vislumbrar uma saída para essa desgraça moral de que sempre se padeceu, mas ainda hoje existem lugares no planeta onde se mantêm escravos de modo mais ou menos encoberto, sob muitas diferentes formas. Inclusive o sistema social produz injustiças constantes e servidões que, infelizmente, continuam se assemelhando muito com a escravidão.

A tradição religiosa do chamado mundo ocidental é a cristã. Portanto “Os filhos de Noé” são os povoadores da terra após o cataclismo do Dilúvio. Aqueles para quem a Gênese é a palavra de Deus, não há dúvidas a respeito, embora aceitem que o relato é simbólico. Os brancos descendentes de Jafet, os semitas de Sem e os negros de Cam.

Segundo a genealogia deste último, entre seus filhos estava Cus ou Cush, que era o mais velho, e Canaã, que era o mais novo. Cam sofreu a maldição de Noé devido ao episódio da embriaguez que obteve ao “inventar” o vinho, tornando-se, juntamente com seus filhos, escravo de seus tios, e seus filhos dos filhos de seus tios, e assim por diante.

Parece que esse era um tipo de maldição empregada pelos hebreus que não se limitava a quem havia feito a ofensa, mas também a seus descendentes. Supõe-se que esse episódio bíblico foi o que causou a escravidão, sobretudo nas pessoas de cor, algo aceitável e inclusive tolerado pela divindade, que não afetava em nada a caridade do cristianismo posterior.

Existe um midrásh — escrito (ou escritos) rabínico que tenta explicar a obscuridade de certas passagens do Toráh — no qual se detalha a maldição de Noé: “Como me tens desgraçado por fazer coisas feias na escuridão da noite, os filhos de Canaã nascerão feios e negros”.

Essa explicação, em vez de esclarecer, pode deixar as coisas ainda um pouco mais obscuras, se nos limitamos à versão atual da Bíblia. A maldição torna-se algo desmedido como castigo pelo simples fato de ver o pai nu, ou inclusive rir por sua nudez.

O que acontece é que numa versão originária do Torá, Canaã, ao ver o avô dormindo embriagado, o castra. Esta parece ser uma passagem tomada do episódio “politeísta” da castração de Urano por Cronos, que se tratou de fazer desaparecer ao canonizar oficialmente os diferentes escritos que comporiam o Pentateuco.

Mas o midrásh continua: “Além do mais, porque voltaste a cabeça para ver minha nudez, os cabelos de teus netos serão encaracolados e seus olhos avermelhados; e porque teus lábios zombaram de minha desgraça, os deles se incharão; e porque tu descuidaste minha nudez, eles andarão desnudos e seus membros viris se alongarão vergonhosamente”.

Porém, se ainda existe alguma dúvida, o midrásh acrescenta que “os homens desta raça serão chamados negros”. Na realidade, a palavra utilizada na época foi “Kemi”, o nome que designava o Egito. Nos salmos se identifica a Kem como Cam. Seus filhos também eram “Mizraim”, que também era Egito. Claro que foram incorporados os negros da costa Somali, Punt, e de Kush, Núbia — miticamente os cuchitas descendentes de Cush — cujos negros eram importados na Palestina como escravos.

A idéia de que os negros estavam condenados — pelo mesmo Deus através de Noé — a servir aos homens de cor mais clara, foi algo gratamente aceito pelos cristãos medievais, já que por causa da peste escasseou a mão-de-obra barata, e por isso foi restabelecida a escravidão. Mais tarde, venderiam os habitantes dos países descobertos pelos navegantes europeus.

Mas o autor do escrito rabínico deve ter pensado que não havia deixado suficientemente esclarecida sua explicação, na qual acresce ainda: “a estes negros, seu antepassado Canaã lhes ordenou que amassem o roubo e a fornicação, que se unissem no ódio a seus amos e que nunca dissessem a verdade”. Há ainda um outro escrito rabínico que acresce ao anterior a sodomia.

Este comentário não só ajusta as contas históricas do período no qual os hebreus estiveram dominados, mas tem a finalidade de justificar a histórica escravidão dos cananeus por parte do povo hebreu, assim como por todos os pagãos. De passagem, voltou-se a introduzir a idéia de “maldade” numa humanidade já purificada, em teoria, pelo dilúvio. Não obstante, os hebreus escravizaram aos próprios hebreus e aos estranhos, libertando os compatriotas depois de seis anos de serviço. O Templo de Salomão foi construído por mão-de-obra escrava.

A escravidão, deixando de lado os diferentes mitos, era uma realidade. Existem dados que remontam ao quinto milênio e provêm do povo sumério. Aparentemente, eram os assombros de seus contemporâneos, já que tornavam escrava sua própria raça, e não aos que venciam nas conquistas, como era o costume.

Escravizavam-se os criminosos para que purificassem suas culpas quando estas eram graves, e se um cidadão tivesse dívidas, mais ou menos vultosas, deveria garantir seu pagamento com sua própria pessoa, considerando-se escravo até que a saldasse. Os sumérios foram os amos menos cruéis do mundo antigo, pois proporcionavam aos seus submetidos alimentos, vestimentas, alojamento e assistência médica.

Protegiam-nos dos maus tratos e lhes permitiam ter propriedades, pedir empréstimo e comprar sua própria liberdade. Podiam inclusive recorrer aos tribunais em disputas questionando a própria venda. Recuperavam a liberdade com a morte de seus donos. As mulheres escravas eram concubinas de seus amos e, se estes morriam, também recuperavam a liberdade de seus filhos.

Todas essas regras estavam compiladas no Código de Hamurabi, mas haviam sido copiadas das antigas leis sumérias.

No Egito, a escravidão foi rara, já que a mão-de-obra nativa era abundante e barata, e era mais econômico contratar trabalhadores do que ter sua posse, pois não teriam que alojá-los, alimentá-los nem protegê-los.

Em geral, os escravos eram criminosos, prisioneiros de guerra, aos quais se enquadrava na milícia ou se enviava às pedreiras ou ainda eram designados aos templos.

Os escravos na antiguidade eram inimigos conquistados nas batalhas. Assim foi entre os sunitas, xiitas, persas e hindus, dentre outros. Os assírios vangloriavam-se de escravizar cidades inteiras, por isso tinham grande quantidade de escravos, eram amos essencialmente cruéis, não só no tratamento. Matavam por qualquer coisa e o castigo mais freqüente era a mutilação. Os traficantes mais famosos da época eram fenícios. Eles empregavam os escravos na exploração de suas minas espanholas e na construção de cidades.

Na China e no Japão, havia poucos escravos, que eram como criados domésticos, considerados membros da família. A relação do escravo com seu amo era como a do homem com os deuses. Geralmente não eram maltratados, embora a morte pudesse ser o castigo por sua desobediência.

Os gregos e os romanos também seguiam a tradição escravagista; há relatos de que os helenos chegaram a empregar a pirataria para consegui-los. Os romanos os obtiveram por meio de guerras, do comércio e das dívidas. Tanto na cultura grega quanto na romana foram a base da economia, distribuídos entre a indústria, o comércio e todo tipo de trabalho. Os serventes, cozinheiros, barbeiros, músicos, agricultores e os gladiadores em Roma eram escravos.

Sobretudo em Roma, o comércio de escravos foi muito lucrativo e abundante. Havia tantos escravos que se chegou a pensar em uniformizá-los, mas a idéia foi rejeitada por medo de que se vendo tão numerosos, estes poderiam revoltar-se contra seus amos. De qualquer forma, isso chegou a ocorrer em três ocasiões. Foram as chamadas “guerras servis”. A última foi a encabeçada pelo trácio Espartaco. Alguns historiadores relatam que os romanos acabaram dependendo tanto de seus escravos, relaxaram tanto, que esta pode ter sido uma das causas da queda do Império.

As invasões “bárbaras” puseram fim à escravidão mais ou menos “civilizada”, já que os vencedores retomaram a crueldade dos assírios para com seus escravos. Precisamente, a atual palavra “escravo” provém de “eslavo”. Estes e os tártaros foram os amos mais tiranos e cruéis da história.

Entre os primeiros cristãos, a escravidão não foi muito importante, mas pouco a pouco foi-se impondo no sistema romano. Com o passar do tempo, transformou-se em servidão medieval. Esta perdurou até a expansão naval “moderna” e o desenvolvimento do comércio internacional, sobretudo com o sistema de plantações na América.

Desde o final do século XV e início do XVI, o comércio de escravos caiu na mão de europeus, voltando-se à “tradição bíblica” sobre Cam e seus descendentes de cor escura. Foi no século XIX que começou o movimento abolicionista, não chegando a sua total culminação senão no primeiro quarto do século XX, ao menos dentre os povos civilizados.

Rosa Torres

Autor

Revista Esfinge