Todo escritor é um observador do mundo que o rodeia, através do qual se pergunta por si mesmo, tratando de descobrir sua porção de verdade. Uma vez vislumbrada essa verdade, e diante de sua necessidade de transmitir a profundidade alcançada, elaborará e destilará novamente no seu próprio atanor as imagens e as vivências acumuladas. Assim,

todo escritor se vai forjando nas próprias vivências. Isto é, para escrever, deve-se possuir algo objetivamente válido para aportar aos demais, que através da fantasia da ficção possa enriquecer suas vidas.

O autor que sabe o que aportar a seus leitores freqüentemente mostrará ao seu favor a convicção da utilidade do seu escrito. Talvez se guiando por sua intuição, seu amadurecimento interno, ou confiando no seu juízo, possa distinguir facilmente aquilo que esteja muito simples ou insignificante, evitando o chato ou sem qualidade.

Toda obra literária é um reflexo do caráter do escritor e da sua própria humanidade. Os grandes autores como Homero, Cervantes, Shakespeare, Dante, Dostoievski, Tolstoi, Borges, são admirados pelo ritmo da sua escrita, pela capacidade de recriar um ambiente, pela força descritiva de seus personagens, pela sua forma concreta de elaborar as frases ou parágrafos, mas principalmente são valorizados por sua capacidade de análise e compreensão da alma humana, por seus juízos acertados e, em suma, pela humanidade e pelas virtudes que transluzem nos personagens.

Em troca, na falta de um bom “fundo”, muitos escritores tentam recriar “a forma” dos textos, resultando espessos, excessivamente recarregados de imagens, repetitivos, ou muito melosos. Uma linguagem excessivamente cuidada corre o risco de se tornar maçante, e certamente o autor não entenderá por que ninguém gosta.

Os escritores novos tendem a utilizar uma linguagem vulgar ou grosseira, que pode representar certa modernidade, mas não é mais do que uma moda passageira que quando filtrada pelo decorrer do tempo não terá mais lugar, pois não tem consistência. Não obstante, como com as cordas de um violão, todo autor atrairá alguém que vibre na mesma freqüência. Uma linguagem fútil ou vazia de conteúdo sempre atrairá leitores da mesma categoria.

A criatividade deve romper também as barreiras de uma série de tópicos universais, de uso comum, como por exemplo “seu cálido sorriso” ou “sua agradável presença” ou ainda expressões sobrecarregadas como “a pátina do tempo”, etc. Vivemos num mundo que constrói a sua linguagem com frases e expressões predefinidas. Do mesmo modo que a sociedade nos impõe uma série de idéias preconceituosas e enlatadas, que se repetem e contagiam constantemente, escutamos à nossa volta uma linguagem feita, infestada de lugares comuns que convém evitar.

Assim, dizemos de algo que “se repete até se saciar” que é “recorrente” e ocorre “sem solução de continuidade”, chegando a “martelar nossos ouvidos”. É curioso comprovar que certas frases feitas se instalam no jargão cotidiano com significados contrários aos de sua procedência, haja vista a expressão “sem solução de continuidade”, que matematicamente significa que na representação gráfica de uma curva em algum ponto falha a continuidade, e portanto há nela uma omissão ou uma indefinição, isto é, nesse ponto falta a solução que permita a continuidade, quando se utiliza na linguagem com o sentido de que existe continuidade.

A linguagem literária tampouco requer grandes complexidades barrocas. Não se escreve melhor por fazê-lo de modo sobrecarregado, utilizando excessivas metáforas e imagens, nem alardeando pedantemente palavras desconhecidas. Dado que num texto literário apenas há algumas palavras que desconhecemos, disso se deduz que se pode escrever com palavras do nosso vocabulário habitual. Devem-se utilizar palavras que geralmente se entendam, uma vez que o importante é saber o que queremos transmitir.

A simplicidade na linguagem geralmente se consegue com muitas horas de trabalho, polindo as arestas do retórico. Quem tem a vivência e a necessidade de escrever o melhor possível para transmitir suas idéias, sabe o quanto custa acabar um texto que se possa considerar completo, a ponto de sentir-se satisfeito.

Finalmente, apesar do que foi dito, deve-se aconselhar uma certa capacidade de romper moldes e fronteiras. Ser atrevidos para dizer aquilo que queremos transmitir. Escrever com o coração pois ele sempre vai fazer vibrar quem mantém vivos os seus sonhos e sua necessidade de aprender através da leitura. O escritor deve observar o seu entorno, vendo as coisas com olhos de admiração, para poder relatá-las de um modo que outros não apreciaram. Não se deve cingir a uma estrutura muito tradicional, achando o próprio ritmo, sem competir com a forma de contar dos outros. Há que se fazer uma clara distinção entre relato, conto e narrativa. Enquanto que em um conto sempre há uma história, um relato pode não tê-la e ser uma narração meramente descritiva de situações e personagens. A existência de um núcleo na narração é primordial no caso do conto, porque em todo conto sempre deve ocorrer algo, e isso desencadeia alguns acontecimentos que terão um desenlace. Em contrapartida, numa narrativa, podem coexistir mais de uma história, vividas por diferentes personagens, e o núcleo narrativo sói estar disperso em vários nós ou tramas distintos, que se complementam. Pode aparecer uma única história na narrativa, mas ela estará suficientemente matizada, e passará por muitas inclinações e mudanças de ritmo. Manter a intensidade na narrativa é deste modo mais complexo.

O desenlace dos acontecimentos tampouco se encontrará, necessariamente, no final da narração. Na narrativa, como muitas vezes acontece no cinema, pode-se trocar a ordem temporal da ação. Podemos começar a narração pelo seu final para ir rememorando o ocorrido anteriormente, ou também dar saltos temporais para trás e para frente. Não nos devemos cingir necessariamente à ordem cronológica dos acontecimentos, pois pode-se cair na monotonia. Deste modo ganhará vivacidade o relato, mantendo melhor o interesse do leitor. Devemos conseguir um ritmo fluido e ao mesmo tempo intenso.

Sobretudo no caso do conto ou do breve relato, ganharemos em efetividade para narrar aquilo que desejamos por ser a extensão limitada. Por isso, deve-se utilizar a maior economia possível de meios para conseguir rápida e nitidamente nosso objetivo. É fundamental no caso do conto a expressão cotidiana “ir ao essencial”. No conto ocorre de ter poucos personagens, apenas delineados e sem grandes detalhes psicológicos, porque a abundância de detalhes sacrificaria sua efetividade.

Existe a idéia de que é mais fácil escrever um conto do que uma narrativa, ao se pensar na mera extensão, mas é muito difícil conseguir uma narração intensa, com um núcleo narrativo atraente e um desenvolvimento que chame a atenção do leitor, com uma ajustada economia de meios. O ritmo do conto é diferente e deve ser de qualidade do princípio ao fim. Sempre existiram grandes narradores que não podiam fazer bons contos e vice-versa. Ambas as facetas guardam sua dificuldade, requerem um trabalho intenso para que resultem ao menos “decentes”.

EXERCÍCIO RECEBIDO

Meio-dia, o sol resplandecia mais do que em qualquer outra hora, atordoado pelo incessante cantar das cigarras.

Na mesa do terraço de um café estava sentado com uma mulher madura, alta, que olhava fixamente numa direção com os lábios despontando um leve sorriso.

Ele não deixava de mover a xícara de café com leite, derramando parte dele no seu pires e em si mesmo; quando acabou a bebida olhou a face da sua companheira e suspirou, tentou olhar o relógio no seu pulso, mas o reflexo da luz não o deixava ver os ponteiros.

Tirava as costas da cadeira e voltava a apoiar, olhava o céu quase fechando os seus olhos negros, para logo deixar cair de cabeça para baixo.

Pegou o guardanapo e começou cortar em pedacinhos cada vez menores, dobrando-os, juntando-os…

De repente o vento soprou entrelaçando seus cabelos escuros, trazendo consigo aquela música celestial, levantou-se da cadeira da melhor maneira que pôde, sacudindo suas roupas azuis e ao grito de “vem, vem” de sua mãe correu até o carrinho dos sorvetes.

Mª Soledad Torres. As Areias (Bizkaia)

Comentários ao exercício:

Em geral está bem definido o personagem, embora dê a entender na primeira parte do texto que é una pessoa maior, camuflando a realidade final, no que se descobre que é um menino.

Eis aqui o que não é muito acreditável, e na literatura se podem utilizar todos os recursos que estão no nosso alcance, sempre que o resultado mantenha sua credibilidade. Busca-se uma surpresa final, embora talvez pudesse ter aproveitado melhor o tema se desde o início se dessem indícios de que se narra a vivência de um menino…

O exercício, escrito no passado, mantém o mesmo tempo verbal como é lógico, embora se caia na cacofonia de reiterar as terminações “estava”, “olhava” “deixava”, ou bem se escreve “dobrando-os, e imediatamente juntando-os”, etc…, tal como corrigimos no mês anterior. Este aspecto sempre requer, após a sua elaboração, uma última leitura paciente ao final. Não é fácil maquiar terminações mantendo o mesmo tempo passado, embora às vezes em vez de dizer “deixava a cabeça caída” pode-se utilizar “deixou cair a cabeça”, ou também “deixando a cabeça caída”… Utilizam-se, além do mais, verbos “polissêmicos”, isto é, com múltiplos significados, sem ajustar um verbo cujo significado seja mais apropriado. Os verbos “fazer”, “ter”, “deixar”, podem muitas vezes ser substituídos por outros mais apropriado. Na frase “separava as costas da cadeira e voltava a apoiar” poderia-se dizer “se balançava na cadeira”, para fugir de verbos com múltiplas expressões.

Na frase… “Meio-dia, o sol resplandecia mais do que em qualquer outra hora, atordoado pelo incessante cantar das cigarras”, não parece que o verbo atordoar seja o mais apropriado. Mais além da sua beleza, já que o sol não se aproxima ou se apóia junto a algo, tal como os barcos permanecem encalhados no porto um junto ao outro.

Exercício proposto nº 3.- Descrever uma baleia em alto mar, utilizando os cinco sentidos.

MELHORANDO NOSSO VOCABULÁRIO
Trazemos hoje para a nossa seção alguns vocábulos do livro “O Catón” de Matilde Asensi, publicado pelo Editorial De bolsillo em 2001, e um breve resumo do texto em que se utilizam.

Taumatúrgica.- O pertencente ou relativo à taumaturgia.

Taumaturgia: faculdade de realizar prodígios.

pág. 106 “Resulta evidente que não está em nossas mãos ressuscitar os mortos, porque essa capacidade taumatúrgica apenas pertence a Deus”.

Raysan

Autor

Revista Esfinge