Por Leonardo Santelices A

Nosso planeta, a Terra, tem uma história formada por todos os acontecimentos de sua vida. Assim como por sua magnitude a Terra é imensa para nós humanos, o são também as etapas de sua história, que não se contam em anos, mas em milhões de anos.

Essas etapas da história geológica têm deixado pegadas na superfície da Terra, onde podemos encontrar desde as grandes rugas que formam as cordilheiras até os amplos sulcos dos mares. Na Terra há pegadas da água, dos ventos e dos diferentes movimentos que causam suas forças internas, e todo este conglomerado de atividades, que geralmente não chegamos a compreender em conjunto, forma o cenário no qual os diferentes seres vivos que habitamos a Terra nos desenvolvemos.

Também todos os corpos de minerais, vegetais, animais e humanos são feitos de terra; suas formas foram se modificando ao longo do tempo, deixando em seus restos as amostras deste processo evolutivo. Essa dinâmica representa as pegadas que a Terra guarda. Já no século XII o filósofo chinês Chu Hsu dizia:

…sobre altas montanhas vi conchas. Às vezes estão dentro das rochas. As rochas devem ter sido matéria terrosa nos tempos antigos e as conchas devem ter vivido na água. Estes lugares baixos se elevaram e a matéria branda se converteu em pedra dura… citado por M.J. Borrero

O estudo dessas pegadas será a grande paixão do cientista argentino Florentino Ameghino.

Há versões que falam de seu nascimento em Moneglia, província de Gênova, mas ele declara que nasceu no povoado de Luján, província de Buenos Aires e lugar de peregrinação mariana, a uns 70 quilômetros da Capital Federal, em 18 de Setembro de 1854. Seus pais eram genoveses, Antonio Ameghino e María Dina Armanino.

Realizou os estudos primários em sua cidade natal entre 1860 e 1867, e ali teve como preceptor don Carlos D’Aste, que o levaria em 1867 a Buenos Aires para a Escola Normal. De 1867 a 1869 foi estudante na primeira Escola Normal de Buenos Aires, tendo estudado Burmeister e Lyell, encontrando ali sua vocação.

Nesse último ano obteve um posto de professor no colégio Municipal de Mercedes, declarada como cidade em 1865 e que logo seria conhecida como a Pérola do Oeste. Em 1877 passou à direção deste estabelecimento.

Foi durante sua residência em Mercedes que (em suas próprias palavras): “empreendi o estudo dos terrenos do Pampa fazendo numerosas coleções de fósseis e investigações geológicas e paleontológicas que demostraram a existência do homem fóssil na Argentina”.

O historiador da ciência José Babini disse: “Em 1875 faz conhecer suas primeiras espécies novas, enquanto que nesse ano e no seguinte se apresenta nos concursos-exposições organizados pela Sociedade Científica com “sete caixas de fósseis” e uma memória sobre o quaternário, respectivamente. Mas a preocupação dos homens da Sociedade Científica de então era o progresso material do país e o aproveitamento de suas matérias- primas; e não os fósseis ou as discussões sobre o quaternário. O fato é que seus fósseis mereceram a última das quatorze menções honoríficas (as medalhas de ouro foram reservadas para um construtor de uma máquina a vapor e para um fabricante de mármores artificiais)”.

Com 23 anos, no começo de 1878, mudou-se para a Europa. Em Paris seguiu os cursos regulares da Escola de Antropologia e de Museu, ali se relacionando com notáveis personalidades científicas, como Owen, Cope, Gaudry, Paul e Henri Gervais, com quem recorreu as jazidas de Chelles. Ambos publicaram várias notas sobre os mesmos, além de “Os mamíferos fósseis da América do Sul” (1880), com texto duplo, em espanhol e francês, e a descrição de mais de 300 espécies, sendo 70 delas novas.

Regressou a Buenos Aires no final de 1881, casado com uma dama francesa, Leontina Poirier, e como já havia esgotado sua verba, abriu uma pequena livraria de um nome sugestivo, a livraria do Glyptodón, que lhe permitia viver. Sobre esse então jovem cientista, Domingo Faustino Sarmiento, escreveu-se: “Um paisano de Mercedes, Florentino Ameghino, que ninguém conhece e é o único sábio argentino, segundo o sentido especial dado à classificação que reconhece a Europa”.

Nesta época escreve sua grande obra, Filogenia, e no prólogo Ameghino explica o seu sentido:

“À medida que enriquecia minha coleção de fósseis de mamíferos pampeanos e me familiarizava com as numerosas formas que apresentam, columbraba entre elas, as que precederam e as sucederam, laços de parentesco, que se manifestam à minha vista, em séries graduadas de modificações que pareciam obedecer a um plano preconcebido em um primeiro impulso que lhes imprimira direção. Esta lei evolutiva se apresentava a mim tão constante em seus efeitos e resultados, que entrevi a possibilidade de restaurar uma fauna perdida, conhecendo tão somente um pequeno número de seus representantes”.

É uma obra imensa para um jovem que ainda não havia chegado aos 30 anos e que nos mostra, além da precocidade, da que sempre fez gala, a ousadia de sua atividade científica. No mesmo prólogo ele explica:

“Não tenho a autoridade de um Cuvier para impor minhas convicções, e tampouco tenho a celebridade bem merecida de um Owen ou de um Darwin, para temer que um fracasso real ou aparente de meu trabalho possa menosprezar minha reputação científica, até agora nula. Represento um ponto da imensa planície em que sobressaem esses picos elevados do saber humano e me elevei gradualmente com o nível geral da planície. Não é para esses picos que escrevo: me dirijo à planície; e se os primeiros podem fulminar sobre mim suas anatemas, da segunda nada tenho que temer, pois dela saí e a ela voltarei”.

Mais adiante, no mesmo prólogo, indica o propósito ao qual vai dedicar sua vida:

“Outra consideração determina meu atrevimento. Não direi que estou num bom caminho, porque a falibilidade é atributo humano; mas creio estar; e como ainda sou bastante jovem, suponho que se as leis da natureza se cumprem, ainda me sobram muitos anos para levantar bem alto o estandarte das idéias das quais me faço apóstolo e para fazê-las triunfar”.

Por esta obra, em 1884 será nomeado professor de zoologia da Universidade de Córdoba. Se muda para essa cidade e aproveita para estudar geologia e paleontologia da zona.

Em 1886 é nomeado Subdiretor do Museu da Plata, encarregando-se da seção de paleontologia e contribuindo com suas coleções ao Museu, mas por discrepâncias com seu Diretor renuncia em janeiro de 1888.

Permanece em La Plata e continua com seu trabalho científico. Em suas próprias palavras: “Em 1889 enviou uma expedição a Patagonia, a cargo de seu irmão Carlos, com o objetivo de explorar o território e reunir coleções científicas para seus estudos, custeando-a do seu bolso durante quinze anos”.

O gasto desta expedição leva-o a abrir em 1891 outra Livraria, desta vez em La Plata e com o nome Rivadavia, que o mesmo atende até abril de 1902, quando é nomeado Diretor do Museu Nacional de Buenos Aires, cargo que detém até sua morte em 1911.

As obras científicas de Ameghino são numerosas, somam umas 20.000 páginas. “Por um lado está o trabalho descritivo do geólogo e sobretudo do paleontólogo, de valor perene e indestrutível. Quase oitenta por cento das espécies de mamíferos fósseis descritas na obra de 1884 são descobrimentos seus. Com o trabalho dos dois, Ameghino e a de Hermann von Ihering, fundador e diretor do Museu paulista, com o qual esteve vinculado Ameghino e a quem confiou o estudo dos invertebrados fósseis de suas ricas coleções, a paleontologia argentina realizou progressos extraordinários e fundamentais”. José Babini “História da Ciência na Argentina”.

Mas Ameghino não foi apenas foi um geólogo e paleontólogo incansável na busca pelas pegadas que a terra guardou em forma de fósseis, senão que também, e a partir delas, elaborou valentes e inovadoras teorias: “…a tese que Ameghino sustentou e por cujo estabelecimento lutou toda a sua vida consiste em supor uma origem americana para o homem e que o território argentino, ou algum outro próximo a ele, foi a berço de nossa espécie, de maneira que as migrações humanas que povoaram os demais continentes tiraram deste solo, passando por pontes hoje inexistentes”. José Babini

Em tempos mais recentes comprovaram-se vários erros nas teorias de Ameghino, pois certos estratos não eram tão antigos como ele pensou e que o grau de parentesco que ele pensava existir entre a fauna sulamericana e a de outros continentes não era real. Entretanto, isso não compromete o tremendo impulso de investigação e busca pela verdade que Florentino Ameghino desenvolveu durante toda a sua vida, vencendo dificuldades e obstáculos, e por isso continua sendo um paradigma científico.

“Foi um sábio autêntico. Pelo valor de suas investigações científicas, por sua fé em uma teoria revolucionária para sua época (a da evolução) que previu duradoura e fecunda, pela audácia e o vôo de suas doutrinas, e por sua adesão vital, de corpo e alma, à ciência. Foi o protótipo do sábio dedicado exclusivamente aos estudos e preocupações científicas, e por isso vítima das aparentes contradições que essa adesão representa”. José Babini

“A obra científica deste homem, extraordinário naturalista, investigador, pensador e filósofo, se distribuiu em cerca de duzentos trabalhos impressos, e aos poucos ele foi invadindo o mundo científico durante trinta e oito anos trabalho constante, sem interrupções, apesar de todos os contrastes próprios de uma vida de luta incessante para derrubar obstáculos e destruir prejuízos acumulados no mundo científico pelo imperfeito conhecimento dos fatos ou observação rápida das coisas”. Extrato do discurso pronunciado por Juan Ambrosetti por motivo do falecimento de Florentino Amheghino em La Plata no dia 7 de Agosto de 1911.

Em tempos de crônica vermelha e imprensa amarela, é necessário recordar aqueles personagens que dedicaram sua vida a causas que os transcenderam, pois eles são os que deixaram o cimento no qual hoje nos apoiamos.

Na visão ampla que abarcou diversos âmbitos, na firmeza do estudioso autodidata, no valor de expor suas conclusões ainda que não fossem populares, encontramos em Florentino Ameghino um exemplo para as novas gerações que buscam esquadrinhar os mistérios da Natureza e suas leis.

Autor

Revista Esfinge