Esse conjunto maravilhoso das pirâmides de Gizé era essencialmente um lugar de passagem, de nascimento em uma nova forma de vida e também um local especial que tinha relação com as estrelas. Este artigo pretende desvelar ao público em geral alguns dos aspectos do Egito Mágico. Mais que um trabalho científico ou escolástico, é um trabalho intuitivo. Não obstante, se servir para guiar os sentimentos e para despertar as intuições mais poderosas e firmes, terá valido a pena o esforço.

É difícil para qualquer um abarcar todos os aspectos da civilização egípcia, e isso se deve ao fato de sua civilização não se limitar ao mundo horizontal dos feitos e acontecimentos diários da “cidade”, mas se expandir e estender em múltiplas direções. Era uma civilização pluridimensional, erguida sobre estratos complexos, sobre elementos etéreos e imperceptíveis para o observador comum, porém sem dúvida rochas solidíssimas para seus fundadores, sobres as quais se estabeleceram todas as suas estruturas sociais e religiosas. Por isso mesmo, sempre falta algo, sempre há uma explicação a mais, um aspecto complementar a partir de qualquer ângulo por que se examine a história e cultura do velho Kem.

GIZÉ, O LUGAR DE TRANSMUTAÇÃO

Neste artigo, serão abordadas algumas das relações com o mundo celeste.

A religião egípcia foi considerada por muitos como a religião estelar. As alusões astronômicas e astrológicas são freqüentes. Desde os primórdios, nos chamados textos das pirâmides, o destino e a boa ventura do Faraó foram identificados com as estrelas, em especial com as ihmu-sek, as estrelas circumpolares, ou seja, aquelas que nunca são destruídas porque permanecem sempre visíveis.

Muito se tem escrito e se seguirá escrevendo acerca do complexo de Gizé, esse maravilhoso conjunto de pirâmides e dos templos e monumentos. Os detalhes abundam, alguns mais ou menos fantasiosos, outros mais acertados e fiéis à realidade. Em todo caso, seu significado fundamental permanece o mesmo; portanto, segundo a interpretação e tradição esotéricas, ou as correntes aceitas pelo mundo científico, esse é um lugar de morte.

No esotérico, seria a morte iniciática, ou seja, o lugar de passagem ou transformação, enquanto que para os egiptólogos ortodoxos seriam esses monumentos autênticas tumbas desenhadas para faraós concretos e suas famílias. Essencialmente, eram lugares de passagem, de nascimento de uma nova forma de vida e também centros especiais relacionados com as estrelas. Os textos das pirâmides reforçam a idéia do faraó que sobrevive à morte integrando-se ao mundo estelar. O alinhamento preciso desses monumentos tampouco deixa lugar a dúvidas, há uma preocupação por refletir na Terra um mapa celeste, correspondências específicas. Porém quais são elas?

SESHAT, A DEUSA DA GEOMETRIA SAGRADA

As construções sagradas no Antigo Egito estavam regidas pela deusa Seshat, a contraparte feminina de Thot. É uma forma da própria Maat, já que esta representa a ordem, a medida, o justo, a harmonia, a regra, e esses mesmos conceitos são representados por Seshat dentro de seu âmbito próprio: a matemática, a geometria, a computação dos ciclos e dos anos de vida designados ao faraó. Era também considerada como a patrona das Casas da Vida, lugares especiais onde os escribas mais preparados estudavam e se iniciavam nos conhecimentos mais complexos. Seshat está especialmente relacionada com uma cerimônia que talvez tenha sua origem na partilha e mensuração dos campos de cultivo: “o estiramento da corda”. Com o tempo, se converteu em uma cerimônia inaugural e sagrada muito importante que se levava a cabo por ocasião da fundação de um novo templo ou lugar sagrado. Era presidida freqüentemente pelo Faraó e se pode considerá-la, em alguns aspectos, algo parecido com o que hoje se chamaria “a colocação da primeira pedra”.

Seshat era representada adornada com a pele de um felino, com instrumentos de medição ou escritura na mão, e sobre a cabeça uma flor ou estrela de sete pétalas ou braços. Cobrindo-os aparece um sino, cúpula ou cornos invertidos (não há consenso sobre isso) dividida em duas partes por um acesso central.

O fim da construção sagrada é o estabelecimento de relações concretas com o celeste, é permitir a passagem até o sagrado a partir do lugar sagrado ou templo na Terra. Por isso, a deusa conhece e porta um símbolo em sua cabeça: as sete direções do espaço, ou seja, as seis direções ordinárias mais a sétima ou interior e sagrada. Sem dúvida, para alguns esse símbolo representaria a flor do cânhamo, que possui sete pétalas, e que era o material de que estavam feitas as cordas de medição mencionadas anteriormente. Em todo caso, seja em um ou em outro sentido, se refere à medida, às direções e ao espaço, ou seja, conceitos geométricos e matemáticos.

Essa sétima direção é a que permite o acesso ao celeste, representado justamente no meio da cúpula ou cornos invertidos: uapt pt, “a balança do céu” ou a “abertura da abobada celeste”. Em texto da época de Tutmosis III (1479 a 1425 a.C), é denominada como Sefkhet-Abwy, “a dos sete pontos”, e nos textos dos sarcófagos, capítulo X, se diz: “Seshat abre as portas do céu para ti”.

Suas roupas pontilhadas a relacionam com as estrelas e também com sua função solar, de forma similar às do sacerdote Sem, que também portava uma vestimenta parecida na cerimônia de abertura dos centros sagrados, mais conhecida como “a abertura da boca”.

A intenção de relacionar o terrestre e o céu estrelado aparece de muitas formas em todos os monumentos. Em Gizé, na grande pirâmide, essa relação é marcada por dois pares de condutos que partem da chamada câmara do rei e da rainha, seguindo o alinhamento geral, norte-sul, da pirâmide. Sua forma geral não somente indica um eixo norte-sul, mas também dois triângulos invertidos cujos picos inferiores terminam na própria câmara do rei e da rainha. Seu significado será visto claramente mais adiante.

No extremo norte, o conduto da câmara do rei apontava para a constelação do Dragão nos tempos antigos, concretamente para a estrela Thuban, que era a estrela Polar há vários milhões de anos, e que era identificada também pelos egípcios como um instrumento feito de ferro meteórico, utilizado na cerimônia de “abertura da boca”. No lado oposto, o extremo do outro conduto sul apontava para a constelação de Órion ou Sah, sempre representado como um gigante olhando para trás, já que essa constelação era seguida de perto pela estrela Sírio, a mais brilhante no céu do sul e pertencente à constelação Canis Majoris.

Da Câmara da rainha também partem dois condutos, o que aponta para o norte indicando a estrela Kochab, na Ursa Menor, e outro que aponta para o sul indicando Sírio.

ORIENTAÇÃO DAS PIRÂMIDES

Como foi possível a determinação quase exata da orientação das pirâmides? Tomando um só exemplo, o lado leste da grande pirâmide se desvia somente 3 minutos de arco do norte verdadeiro. Tem-se discutido muito sobre isso com distintas soluções propostas, cada uma com seu próprio inconveniente. A mais aceita nos últimos tempos foi formulada em novembro de 2000 por Kate Spence, uma egiptóloga da Universidade de Cambridge, que publicou um trabalho na revista Nature, em que sugere um método pelo qual os construtores de pirâmides poderiam ter fixado a direção norte-sul. O método proposto pela egiptóloga consistia em escolher duas estrelas situadas em lados contrários com referência ao pólo celeste. Tentou várias alternativas, dado que o pólo varia em sua posição com a passagem dos milênios, até determinar que as estrelas chamadas Mizar e Zeta Osa Mayor pareciam ser as mais adequadas de acordo com o tempo geralmente admitido para a construção da grande pirâmide. Seus raios de rotação ao redor do centro polar eram quase iguais e estavam situados em lados opostos, de tal maneira que uma linha que as unisse passaria quase exatamente pelo centro polar. Quando ambas as estrelas estivessem alinhadas verticalmente, o que ocorreria a cada seis meses, bastaria deixar cair um prumo seguindo a linha vertical entre as duas estrela para determinar assim, sobre o solo, a direção norte.

O método parece engenhoso, porém se sustenta sobre um preconceito: a época de construção da pirâmide. Por outro lado, o prumo a ser estendido até o solo teria que ser bastante grande para que fosse útil, e não se vê claramente como se poderia tê-lo feito. Esse seria então outro dos tantos enigmas não resolvidos, ainda que essa solução possa conter parte da verdade. Mas que importância os egípcios atribuíam a esse lugar, e que concepção simbólica os egípcios possuíam acerca do mapa estelar? Para isso, se deve examinar o conceito de Ra-stau e o calendário de Denderah.

RA-STAU

O Livro dos Mortos começa com uma primeira imagem, nela se pode ver Osíris representado como um pilar. Sobre ele mesmo aparece a cruz da vida eterna, que sustenta com seus braços um sol que surge ascendendo. O pilar foi ladeado por Isis e Neftis, as duas deusas protetoras e acompanhantes de Osíris.

Poder-se-ia dizer que essa imagem inaugural é uma síntese que precede todo o acontecimento do livro dos mortos, ou seja, o processo de osirificação, por meio do qual o Maajeru, ou homem de voz reta, ou seja, o defunto depois de ser defendido no famoso julgamento ou psicostasia do coração, passa através de uma série de obstáculos que tem que transpor para poder se converter em um Osíris, um homem semelhante ao rei dos mortos, ou um iniciado, alguém que já ultrapassou os limites humanos, que morreu como homem e nasceu como um novo ser divinizado.

Isso é precisamente o que mostra essa imagem, pois Osíris, tal como o Livro dos Mortos, diz que não é mais que o irmão gêmeo do Sol na Terra. Osíris, após superar as provas, se converte no próprio Ra. Por isso, dele surge a imagem do Sol, que representa a sua essência solar divina. É como se o Sol, enterrado no interior do homem carnal e mortal, finalmente, após vencer as provas e ser osirificado, terminasse por se manifestar livre de amarras e triunfante. O osirificado se converte assim em um Neter, ou seja, um ser divino. O Livro dos Mortos diz que o lugar onde os homens se convertem em Neteru (plural de Neter) é o Ra-Stau. Esse hieróglifo tem duas possíveis traduções:

Ra: boca, abertura, entrada; Stau: corredores, subterrâneos, covas ocultas. Em outras palavras, seria o lugar de entrada ao mundo secreto dos corredores onde se faziam as cerimônias que convertiam os homens em deuses.

Ra: o deus Ra (ainda que normalmente não se consiga usar esse hieróglifo, mas um disco solar); Stau: extrair, secar, tirar para fora. Ou seja, o lugar onde se extrai, onde se libera Ra de sua prisão, quer dizer, a essência espiritual solar e divina.

Do ponto de vista do significado, em ambos os casos o resultado da tradução é o mesmo. Por outro lado, não é estranho encontrar nos papiros um uso ambivalente dos hieróglifos, contendo assim mais de um significado, como se se quisesse com uma só palavra explicar muitas coisas ao mesmo tempo. É algo que também se pode encontrar no uso dos ideogramas chineses. Daí a grande dificuldade para serem traduzidos, porque não só uma palavra, mas todo um parágrafo, pode ser lido num “tom” ou em uma “escala” determinada ou em outra totalmente diferente, complementando assim o sentido geral da frase.

Onde estava situado o Ra-Stau? Talvez pudessem ter existido múltiplos lugares onde se realizavam cerimoniais iniciáticos especiais, porém o mesmo Livro dos Mortos Egípcio e os estudos arqueológicos demonstram que houve ao menos dois mais importantes: um ao sul, em Abydos, e outro ao norte, no “grande túmulo de Osíris”, que está precisamente na área de Gizé, e que era chamado pelos antigos egípcios pr wsir nb rstaw, ou “a casa de Osiris, senhor de Ra-Stau”. Recentes corredores descobertos na metade do caminho da passagem que une a segunda pirâmide, ou pirâmide de Jafra, com o templo da esfinge, mostram vários níveis que alcançam até cerca de 30 metros de profundidade e datam ao menos de 1550 a.C. Poderiam estar relacionados, segundo os egiptólogos, com a alusão a corredores e câmaras subterrâneas que a palavra Ra-Stau contém.

Em conclusão, a área de Gizé é um LUGAR DE TRANSFORMAÇÃO, lugar dos cerimoniais osirianos que facilitavam a transmutação em um ser superior e divino, um neter.

O CALENDÁRIO DE DENDERAH

Construído por volta de 200 a.C., se pode considerar como fortemente influenciado pela astrologia grega. Contudo, sua concepção geral, as chaves fundamentais, e inclusive os símbolos utilizados para o sistema de decanos, são de raízes puramente egípcia, não encontrando paralelo nos zodíacos gregos ou babilônicos.

Não se pretende aqui discutir os pormenores do significado completo, disposição, etc., dos detalhes desse calendário. Somente se assinalarão alguns feitos que interessam em relação ao tema que concerne nesta ocasião a Gizé e seu significado.

O calendário começa a partir de um eixo fundamental, assinalado pela presença de um cetro sobre o qual repousa um falcão (abaixo na cor anil); este é um dos símbolos de Sírio; a seu lado aparece a representação de Órion (cor violeta), equivalente a Osíris, o caminhante que começa seu périplo iniciático através das constelações, iniciando por aquelas relacionadas com o Norte, as constelações relacionadas com o elemento água: Peixes, Aquário e Capricórnio. Essa passagem pelo elemento água não é arbitrária, mas sim uma correspondência com muitas tradições sagradas: trata-se da purificação prévia do neófito, a passagem pelo lago sagrado antes de penetrar no templo. Esses rituais de purificação prévia e renascimento sobrevivem na cristandade na cerimônia do batismo.

O percurso do caminhante Órion continuará logo de forma espiral através do resto do zodíaco, até coincidir com o seu centro. O começo desse caminho corresponde ao eixo da entrada Sul do zodíaco de Denderah, marcado pelos símbolos de Sírio. Em qualquer mapa astronômico, se verá que nessa direção sul se encontram duas constelações muito importantes, que são as mesmas que assinalam a passagem sul que parte da câmara do rei na Grande Pirâmide: a constelação de Órion (uma forma de Osíris) e a constelação de Cão Maior, que pertence Sírio, a estrela mais importante dessa constelação, a mais brilhante do hemisfério sul e também a mais significativa na mitologia astrológica egípcia. Do outro lado, ao final do percurso marcado pelo zodíaco de Denderah, ou seja, no centro deste, está a constelação de Draco que é representada por um hipopótamo (uma forma feminina de Seth) e a Ursa Maior representada aqui como “a coxa”, que estava também estreitamente relacionada com Osíris. Nas representações desse deus, pode-se ver que seu corpo inteiro se assemelha a uma coxa. Em todo caso, nunca aparece representado com duas pernas. Finalmente, entre essas duas constelações, está um chacal sobre um arado, que representa outra vez Sírio.

Quer dizer que no começo do caminho estão presentes Osíris e Sírio, e no final aparecem outra vez, porém com significados distintos. As constelações representadas ao sul correspondem ao Osíris que inicia seu caminho acompanhado por Sírio, ou ao candidato, enquanto que as que aparecem ao Norte (no centro do zodíaco de Denderah) representam o Osíris perfeito e acabado: a constelação da coxa assim indica, haja vista que em muitas outras representações funerárias e no próprio Livro dos Mortos se pode ver como uma coxa é oferecida ao “defunto” (morto para os homens, e nascido de novo para os deuses) com um texto adjunto parecido com o seguinte: “aqui te trago em oferenda o olho de Hórus, o olho espiritual ao qual se faz equivalente a coxa de Osíris”.

O zodíaco de Denderah representa, portanto, de alguma maneira, o caminho de Sírio, ou seja, o caminho iniciático. Sírio era simbolizado por Anúbis, porém se sabe que havia dois Anúbis, um do sul, chamado Uapuauet, e outro do norte, chamado Anpu, o primeiro associado ao solstício de verão e o segundo ao solstício de inverno. Em astrologia clássica, o solstício de inverno (capricórnio), relacionado com o norte, foi chamado de “porta dos deuses”, e o solstício de verão (câncer) relacionado com o sul, “a porta dos homens”.

Esta é precisamente a mesma idéia presente no complexo de Gizé que de certa maneira é semelhante ao Teotihuácan mexicano, a cidade onde os homens se convertem em deuses. O eixo norte-sul, assinalado pelos dois pares de condutos que atravessam a câmara do rei, indica a porta de entrada e de saída, enquanto que a câmara corresponde ao lugar de transformação.

No calendário de Denderah, o chacal no centro, que se apóia sobre um arado, corresponde a um hieróglifo que tem vários significados: Mery, “o vértice de um triângulo”, ou Meryy, “crocodilo”, em alusão à constelação do dragão e a outras constelações egípcias com forma de crocodilo, situadas no pólo. O vértice do triângulo pode ser visualizado melhor no gráfico superior, onde Anúbis do norte e Anúbis do sul têm como centro o vértice simbólico comum a Sírio (síntese do Anúbis do sul e do norte).

Esse vértice superior tem também como imagem o reflexo invertido na parte inferior, outro vértice constituído pelo triângulo formado pelos dois pares de condutos norte e sul e que tem como centro a câmara do rei.

Assim fica explícito e geometricamente claro o papel de Gizé como lugar de transformação, relacionado com as estrelas. Quer seja essa transformação de uma morte iniciática ou de uma morte física, quer se tenha uma visão esotérica ou ortodoxa acerca da egiptologia, em todo caso, o que, como já dito, permanece evidente é que se trata de um lugar de passagem e de transformação, um lugar de alquimia, tal como o símbolo dessa ciência indica: o Caminho de Ouro de Anúbis.

Juan Martin Carpio

Autor

Revista Esfinge