Neste sentido surgem novas perguntas. Que culto era celebrado na região, anterior ao dedicado à imagem que conhecemos como Nossa Senhora de Atocha ? A que divindade feminina se dirigia ? E porque precisamente ali e não em outro lugar ?

Sem descartar a possibilidade de que proceda da vertente celta de acordo à opinião já assinalada pelos eruditos franceses, insistimos que na Espanha existiram povos que contavam com deusas negras em sua tradição, como os tartéssicos, que veneravam a Noctiluca, a luz lunar, e os fenícios ou os romanos, que incorporaram Ísis ao seu panteão. Sem falar do arquétipo da Mãe, que é universal e portanto comum a todos os homens de todos os tempos.

Com Nossa Senhora de Almudena surge outro enigma. Alguns cronistas de Madri falam de uma primitiva imagem visigoda, enquanto para outros seria uma imagem romana, o que apoiaria a hipótese assinalada anteriormente relativa aos cultos pré-cristãos. Hipótese que neste caso não podemos nem afirmar nem negar. Esta imagem primitiva jamais foi encontrada, pois qualquer que tenha sido a sua origem foi queimada na época de Henrique IV e a afirmação, tão repetida, de que a atual imagem é a mais antiga da Espanha fica sem fundamento. Em descrições posteriores parece ter sido confundida com Nossa Senhora de Atocha, como são as menções à pintura que figura no sarcófago de San Isidro que, no entanto, parece representar a primeira, enquanto que outros falam que estavam juntas as duas Virgens.

Uma das lendas relativas à Virgem de Almudena nos conta que Alfonso VI mandou pintar na parede de uma mesquita, anterior a construção da Igreja de Almudena, um quadro tal como se recordava a imagem para conservar sua tradição (um fato curioso, pois se efetivamente aconteceu evidenciaria a enorme tolerância dos muçulmanos). Este quadro mostrava uma Virgem com um lírio na mão. Trata-se da Virgem da Flor de Lis, que também figura em outro quadro posterior que esteve durante muito tempo na Igreja de San Isidro e depois na cripta da Catedral de Almudena. Há outro dado do século XVII onde ela é descrita sentada, morena, de nariz aquilino, cabelos longos e, novamente, com um lírio na mão. É neste período que se tem situada a origem da imagem atual. Diz-se que os restos da primeira imagem, que era de pinheiro incorruptível, porém não imune ao fogo como ficou comprovado, foram introduzidos na imagem posterior, como também foi feito em outros lugares em casos similares. A verdade é que os citados restos não apareceram.

Supondo que em algum momento existiram duas virgens negras distintas e independentes, e não uma “transferência” de informações, o fato chama a atenção. Se, como dizem os investigadores, sua “aparição” e localização é intencional, porque contamos com duas “aparições” a tão pouco distância uma da outra ?

Para não ficar atrás, também se atribuiu à intervenção de Nossa Senhora de Atocha a reconquista de Madri na época de Alfonso VI, e a partir desta data foi crescendo ainda mais sua devoção e as novas doações. Em função disto, o arcebispo de Toledo destinou vários padres para atender os cultos, sendo sustentados pelo patrimônio criado. Então se construiu um novo templo, ainda que foi respeitada a ermida, que durou até a época de Felipe II. Esta ermida media somente 14 metros quadrados e estava repleta de muletas, correntes, barcas, lápides, quadros, etc. Fruto do agradecimento de seus fiéis e mostra de sua intervenção milagrosa.

O tamanho reduzido da ermida se deve aos acordos firmados com os mouros, que assinalaram o tamanho que deveria ter, talvez por questões de segurança. Esta informação é importante já que nos mostra que os árabes estavam cientes do seu culto e o respeitavam, e que as intervenções das quais nos fala a tradição, a favor do lado cristão e os ocultamentos para evitar profanações, como é citado claramente na lenda de Almudena, obedecem mais a intenções religiosas, políticas e sociais que a uma ameaça real.

Na época das três culturas aparecem dois milagres de Nossa Senhora de Atocha nas Cantigas de Alfonso X, o Sábio. Porém o mais famoso é o de San Isidro. O Santo era muito devoto desta adoração da Virgem. Todos os dias a visitava antes de ir trabalhar e colocou-se sob a sua proteção para obter um bom casamento, o que depois se converteu em costume para muitos. Um dia, estando Isidro no campo, seu filho caiu no poço de sua casa, de onde não podia ser retirado. Ao voltar seu pai do trabalho e ver o acontecido suplicou o auxílio de Nossa Senhora. Então a água do poço subiu até a boca e levou à superfície o menino são e salvo. O pequeno devia saber nadar e ter um domínio assombroso de si mesmo para sobreviver na água do poço até que o pai rogasse ajuda.

O poço do milagre pode ser visto hoje em dia no Palácio dos Vargas, sede do Museu Municipal de San Isidro. Há versões que dizem que o menino salvo das águas (individualizado, renascido) não era seu filho, mas o filho da família Vargas, de quem San Isidro era servo.

Também temos uma libertação espetacular de cativos. Uns condenados à morte colocaram-se sob a proteção de Nossa Senhora de Atocha e apareceram livres de suas correntes junto ao convento de Atocha, sendo recebidos pelos frades. Isto ocorreu no século XVI. Na mesma época, uma epidemia de gripe que causou muitas mortes na Espanha fez com que a Virgem fosse levada em procissão à Madri. Neste momento cessou a epidemia e ficou curado também Felipe II, enfermo e desenganado.

Outra procissão, neste caso, de Nossa Senhora de Almudena, acabou com um grande incêndio. Ocorreu no mesmo século dos exemplos anteriores e na praça da Província, onde várias casas afetadas vieram abaixo ante a imagem que passava no momento por ali, permitindo que fosse possível combater o fogo.

Na época dos Bourbons começou a ganhar expressão o culto a esta representação de Nossa Senhora. Foi roubada em 1789 e seu autor foi executado. Foi escondida e localizada com uma corda no pescoço, seguramente por algum miliciano após a guerra civil. Quando a igreja de Almudena foi derrubada foi levada para o convento das Bernardas e em 1954 a San Isidro, estando agora na Catedral que lhe está consagrada. Em novembro de 1948 foi coroada e desde então é patrona de Madri. Seu dia é 9 de novembro.

Autor

Revista Esfinge