“Novembro, mês ditoso, que começa com o dia de Todos Santos e acaba com o de Santo André”; assim o verso popular marca o nono ano do calendário romano.

Já perdido o verão de São Martín, entrevê-se o ainda distante inverno e começa uma fase agrícola importante, na qual o porco, panacéia da economia campesina aragonesa, tomará um protagonismo especial. Em Aragão, sempre se aduba utilizando esterco e antes de os adubos sintéticos impregnarem as pessoas que recolhem o esterco, chamados “femeros” ou “femateros”, é o momento de se ver se foi bem cumprida a providência de retirada do esterco, que fica em montes nas torres e estabelecimentos agrícolas. É corriqueiro o fato de as “femeras” disputarem nos currais a duvidosa honra de recolher os excrementos dos habitantes, que enriqueciam assim o esterco futuro. E dizia-se para quem estava comendo abundantemente e com voracidade, com ar de brincadeira: “Puxa, que bom, já podes cagar para uma ‘femera’”. “Femateros” e “femateras” eram partes inevitáveis de uma economia agrícola. Eram atividades coletivas: “espigar” na sega, recolher folhas para os coelhos, espantar os pássaros dos campos semeados, levar a comida ao campo quando fosse necessário, enquanto se aprendia o trabalho dos “maiores”. As terras necessitam de adubo, nossos lavradores sabem disso, sem necessidade de recorrer a Virgílio, que nas tantas vezes citadas “Geórgicas” já selecionava novembro como época adequada para o adubo, aconselhando os lavradores com seus inspirados versos latinos.

Neste período de nevoeiros, ainda não haverá geleiras; mas com elas diminuirá a temperatura, aumentará a umidade e iniciarão os riscos de geadas. Por conseguinte, serão temidas e se buscará sua causa nos maus espíritos. Em Aragão, não se utiliza um drástico e efetivo sistema para expulsar a névoa, o que deveria existir em Zaragoza, onde as persistentes névoas do Ebro apenas encontram antídoto na ação violenta e benéfica do aquilão, que alguém chamou “noivo da cidade”, e até se poderia dizer que parecem aqueles namorados que demonstram seus sentimentos com gritos e até com pancadas. Em troca, conserva-se um modo concreto que parece pitoresco no Montseny catalão, que talvez proceda das ilhas do Mediterrâneo central, onde é de conhecimento geral. Quando a neblina se condensa até cobrir as terras e o céu e impedir a visão, basta que uma moça lhe mostre suas nádegas para que a névoa corrida e envergonhada desapareça. Caráter universal, entre os povos que recordam a fibra e o tecido como atividades diárias, existe a crença de que quando sai o sol, e a névoa se desfaz, é que a Virgem está tecendo e tira algumas fibras que, com atenção, se verão luminosas no ar enquanto voam e saem das mãos e da roca de Nossa Senhora, a quem o povo apresenta como uma boa dona de casa, lavando fraldas do Menino, fiando e tecendo.

E em todas as partes não há nada melhor para expulsar o nevoeiro e seus nocivos efeitos que ameaçá-lo com todo tipo de instrumentos cortantes ou incisivos. Há centenas de anos, era freqüente ver nas portas de suas casas ou oficinas, barbeiros ou sapateiros, empunhando armas pontiagudas, sovelas, navalhas ou os utensílios próprios de seu ofício com os quais desenham enérgicos movimentos debaixo para cima para amedrontar os incômodos espíritos que moviam a névoa. Em contrapartida, são escassas, ou pelo menos não se conhecem nestas terras, as canções e cantigas infantis destinadas a afastar a névoa. Amades trouxe uma muito curiosa, catalã, “Boira feste enllá, si no el llop se’t menjará“, com a curiosa adaptação de um mito europeu, no qual o lobo comia a névoa, convertendo-se em um animal benéfico. No Oriente Próximo, dizia-se há mais de mil anos que a névoa brotava das raízes do pasto e que poderia ser combatida arrancando os brotos ou removendo o solo, de modo que saísse fugindo ao se ver descoberta e inerme, favorecendo que os animais selvagens a comessem sem lhe dar a oportunidade de chegar ao céu, para onde se dirige. As pessoas de Valcamonica, nos Alpes italianos, dão sua versão sobre a densa “nebbia” que açoitou cinco dias Monte Campione. Nascia do fundo do vale, de onde saía rápido, para se agarrar às montanhas esperando autorização para passar ao céu. Essas pessoas, desde tempos pré-históricos, explicam a presença em seu vale, uma frente à outra, de duas montanhas, uma masculina, o Pizzo Badile, solitária e pontiaguda, e a Conca Arena, suave e feminina; seus amores originaram o vale e as culturas, e apenas faltava ao panteísmo dos montes que o sol saísse a cada dia por detrás do Pizzo Badile, ornando-o com um resplendor sacro. Resulta que as milhares de gravuras rupestres desse lugar não fazem outra coisa senão sacralizar montanhas, névoas e neves.

Em muitos lugares, especialmente nas montanhas, podem aparecer as primeiras nevadas, que são cumprimentadas pelos lavradores com gratidão e aplauso. “Ano de neves, ano de bem”, reza o refrão, próprio das terras secas, sempre ávidas de umidade, que no caso da neve se aproveita integralmente. Em toda a Europa, desde a Idade Média, mantém-se a idéia de que a neve é sinal evidente de uma festa que se celebra no céu, e os seus flocos são as plumas dos gansos que se desplumam para a ocasião. A idéia é tão velha que quando Heródoto explicava porque não se podem habitar as terras dos Escitas, fundamentava a explicação no fato de que caíam sempre muitas plumas do céu a dominar a atmosfera, privando-a de sol.

A mitologia da neve se perdeu totalmente em Aragão, e os tempos atuais a relacionam com os esportes ou com as comunicações e as dificuldades do trânsito nos portos. Mas houve um tempo em que era recolhida nos “poços da neve”, “do gelo”, quando não existiam frigoríficos que o fabricassem, primeiro vendendo-o em barras conservadas entre serragem. Hoje, essas operações de há poucos anos foram convertidas em atividades obsoletas sob o reino do frigorífico e dos congelamentos. Mas há pouco mais de meio século, quando nevava, não apenas se declarava oficialmente a alegria das crianças ao saírem das escolas e fazer jogos com os bonecos de neve e as batalhas com projéteis brancos, mas também tomava-se a neve, polvilhava-se com canela e se convertia em apreciados sorvetes. A medicina popular a misturava com azeite e a utilizava para curar as queimaduras. E a má idéia de alguns bárbaros fazia com que as inofensivas bolas de neve se convertessem em temíveis projéteis mediante o arbítrio de esconder sob a imaculada e branda capa um pedregulho que traduzisse suas más intenções. Mais inofensivas eram as artimanhas literárias dos vates que indeclinavelmente cumprimentavam as primeiras nevascas com a figura poética do “branco sudário”. É o tempo dedicado pelos lavradores à semeadura, pelos oleicultores à colheita da azeitona no fim do mês, sem que as geadas impregnem os frutos. Essa atividade é realizada com muitos costumes populares, cantos e até bailes, por coincidir na tarefa homens e mulheres, e saudações das pregadoras da Virgem e santos das capelas quando voltam do trabalho e passam pela porta das capelas.

É tempo de que o café da manhã se resuma a um bom prato cheio de farinha, farinha de milho, bem espesso, com pouco pão e menos toucinho, com o indispensável azeite, comidas que dão água na boca, perfilando o prato em círculos concêntricos de fora para dentro, sem deixá-las esfriar, porque não apenas eram alimento mas também calor.

Na Europa medieval, especialmente nos países germânicos, situava-se no fundo dos “pokale” ou bocks uma medalha com a imagem de Cristo, e se devia apurar o conteúdo de um trago, ou seja, “até te ver, Jesus meu”, embora essa expressão se tenha convertido em trabalhar até cansar de dor. Em Paniza e outros povoados aragoneses, bebe-se sem parar enquanto os demais cantarolam ou se finge o som de uma bomba.

Antonio Beltrán

Autor

Revista Esfinge