A Idade Média, uma época controversa

A-Sociedade-Medieval-e-a-Ordem-de-CavalariaCom a queda do Império Romano, as tribos germânicas, preocupadas até então com a luta nas fronteiras do Império, veem livre o caminho para a expansão. Saxões, vândalos, merovíngios, ostrogodos, francos e lombardos estendem-se por toda a Europa. Às Ilhas Britânicas chegam pictos, escotos, anglos, saxões e jutos, que encontram certa resistência com as tribos nativas, os bretões, de religião celta. Um dos principais oponentes foi Artur, figura mítica que cresceu em importância com o decorrer dos séculos, ampliando sua ação com influências de variadas procedências.

Dessa época, guardam-se apenas testemunhos escritos, pois esses povos guerreiros não eram amantes das letras. Por outro lado, as letras rúnicas que utilizavam, gravadas sobre a pedra ou a madeira, requeriam seu tempo e não facilitavam o trabalho dos copistas. Posteriormente, produziu-se a cristianização desses povos, e os antigos relatos orais celtas ou germânicos foram modificados ou velados para não irem contra as novas crenças. Assim, não devemos estranhar ver Artur como defensor do Cristianismo ou ao Graal como o cálice da Última Ceia. Todavia, existia certa resistência em difundir essas lendas pagãs1. Teria que se esperar os séculos XI ou XII, quando o crescimento econômico e a perda do medo de voltar às antigas crenças unem-se, para poder assistir à ampla difusão desses mitos.

Às vésperas do ano mil, cresceu grandemente o temor pelo fim do mundo. Esse fenômeno relaciona-se com as tradições hebreias da vinda de um anticristo e de um novo messias2. O Rei Artur, o “rei que foi e será”, também é o rei esperado, o rei que devolverá a unidade ao seu povo desaparecido em lutas fratricidas. “Um rei, uma terra” será o lema de seus seguidores, rememorando a identidade germano-celta entre o poder humano e divino, entre um rei e seu território; esse é também um dos temas da lenda do Graal, a identidade entre as feridas do Rei Pescador e a Terra Estéril. Junto aos temores milenaristas, somaram-se toda classe de catástrofes naturais: epidemias, fome, presságios sinistros como cometas e eclipses, entre outros. Esse clima de pessimismo e catastrofismo quase chegou a paralisar o crescimento econômico do século XI.

 

Crescimento econômico e cultural

O século XI nos mostra a Europa Ocidental despertando para um novo ressurgimento. Quando passa o ano 1033 (1000 anos após a morte de Cristo) começaram a desaparecer as penitências e purificações, manifestando sinais da benção divina. A partir de então, tanto na política como na economia, cultura ou atividade religiosa, a Europa desenvolve sua própria civilização. Os governos centralizados, na Alemanha, França e Inglaterra, solucionam a anarquia feudal, estabelecem sistemas de administração local que mantêm a lei do rei, seu poder para armar exércitos e o seu direito de arrecadar impostos.

Com o nascimento de um governo fortemente centralizado, produz-se o crescimento da classe média. Durante toda a Idade Média a maioria da população era campesina, mas do século X ao XII as cidades começaram a crescer rapidamente – primeiramente na Itália, depois no resto da Europa. Os mercadores da Itália controlavam o comércio com Bizâncio e com o Islã, desenvolvendo interiormente o sistema bancário. Nessa época ampliam-se as fronteiras da Cristandade: em 1085 conquista-se Toledo; em 1095 começam as cruzadas no Oriente; nesse mesmo século os muçulmanos do sul da Itália e da Sicília são expulsos. No início do século XII toda a Cristandade ainda se regozija com o êxito dos cavaleiros cruzados na Primeira Cruzada, no ano de 1099. As cidades são o centro para o desenvolvimento de novas ideias e atitudes. Os cidadãos aprendem nas assembleias os fundamentos do autogoverno e a ter uma ideia mais mundana e menos transcendental da vida. O comércio expande-se, a população cresce e incrementa-se a produção agrícola. Derrubam-se bosques e secam-se pântanos para criar novas terras de cultivo. Novas cidades são fundadas: Villanueva, Villanova, Villeneuve, Neuburg… Inovações tecnológicas, como melhores arados ou moinhos de água, tornam o trabalho do agricultor mais frutífero. Cresce o número de artesãos e mercadores. Devido ao desenvolvimento das cidades, a Europa já não pode ser dividida em nobres que governam e fazem a guerra, clérigos que rezam e o povo que cultiva a terra, pois cresce a importância de burgueses, comerciantes e artesãos. E sem dúvida são os cavaleiros que, segundo veremos posteriormente, os que adquirem o protagonismo e recebem a fama e a estima popular.

Na Idade Média existia um clima propício aos sonhos e visões. O sobrenatural não era considerado impossível, nem sequer raro. Os sonhos e as visões provinham de Deus ou, em alguns casos, do demônio. Na Idade Média, até mesmo a vida profissional estava ritualizada, povoada de símbolos. A arte de construir, por exemplo, requeria a cooperação de operários, artesãos e Mestres. Os conhecimentos eram transmitidos de forma muito seletiva e não tinham um caráter somente material, mas também espiritual e esotérico. As corporações medievais não eram meramente operacionais. Analogamente, os trovadores não eram simples compositores ou orquestradores de canções. Tampouco transmitiam simplesmente uma mensagem, como na atualidade, senão uma cosmologia, uma visão do mundo.

Até o século XII, os únicos lugares onde se podia encontrar livros eram nas bibliotecas dos mosteiros e das catedrais, e quase todos os livros haviam sido escritos por pagãos e cristãos do mundo grego e romano. Nesse momento, começa-se a compilar um grande número de relatos orais, e uma série de cortes influentes começam a influenciar a moda, a literatura e a cultura em geral.

 

Miséria e Violência

O crescimento econômico de que falamos, com prósperas cidades, grandes igrejas, florescentes escolas e universidades, poderosas e sofisticadas cortes não deve nos confundir, pois as crônicas da época nos falam de pobreza e sofrimento, ignorância e crueldade. Dependia-se dos ciclos agrícolas, e uma má colheita podia provocar espetaculares aumentos de preço e espantosa escassez de alimento; ademais, os campos de cultivo e as construções dos inimigos eram destruídos nas guerras. Além das inclemências do tempo e das guerras, os agricultores tinham que suportar os saques dos bandidos e salteadores. A Idade Média tem um lado obscuro: os judeus foram massacrados; homens e animais eram sacrificados em rituais religiosos; o fogo, as pragas e a fome eram frequentes; as cruéis perseguições religiosas não descansaram um momento. Esse é o paradoxo medieval, onde a beleza e a feiura conviviam em uma intimidade familiar. Não devemos, porém, surpreendermo-nos, posto que hoje tampouco podemos resolver o paradoxo de nossas grandes cidades, nas quais também se mesclam a compaixão e a brutalidade, a erudição e o analfabetismo, o luxo e a pobreza.

Dos documentos da época extraímos a imagem de uma vida turbulenta. Encontramos processos, crimes, perseguições sem fim. Tudo nos faz pensar em um mundo obscuro. Onde quer que busquemos, seja na literatura, nos historiadores, nos tratados religiosos ou em qualquer documento da época, percebemos um toque de amarga melancolia, maldade, ódio, cobiça, rudeza e miséria.

Esse clima de amargura é descrito por Eustache Deschamps3:

“Tempo de dor e tentação, idade de pranto, de inveja e de tormento, tempo de relaxamento e de perdição, idade que se aproxima de seu fim, tempo repleto de horror, em que tudo se faz loucamente, idade enganosa, plena de orgulho e inveja, tempo sem honra e sem juízo verdadeiro, idade de duelo que abrevia a vida.”

O pessimismo do século XIV já existia no século XII, durante a escassez de alimento de 1125, em Flandres:

“Nessa época, ninguém podia se alimentar normalmente da comida e bebida… Os alimentos crus e indigestos exauriam os indivíduos cuja fome não cessava de torturar até que dessem seu último suspiro. Um fato incrível para contar é que ninguém em nossa comarca havia conservado sua cor normal; todos tinham essa palidez própria dos mortos. A mesma debilidade acometia enfermos e sadios; a visão do sofrimento dos moribundos deixava mal àqueles cujo organismo conservava-se sadio4.”

A violência também estava presente nas guerras, com maior força nas religiosas, fosse entre cristãos e infiéis ou contra os acusados de heresia. Se há algo característico da Idade Média é a estranha mistura entre fé e guerra, cuja síntese perfeita são as cruzadas.

 

A Cavalaria: um Ideal de Vida

 

Origens da Cavalaria

Em princípio, a Cavalaria está ligada à história dos guerreiros a cavalo, particularmente na França do final do século X, quando os cavaleiros convertem-se no corpo militar mais importante, frente à infantaria comum e em figura de crescente poder político. O exercício de poder por parte dos cavaleiros foi possível porque somente eles possuíam o necessário treinamento militar, a suficiente riqueza e o próprio cavalo para poder desenvolver sua forma típica de combate. A diferenciação social baseada inicialmente na habilidade e destreza dos próprios cavaleiros originou um sentido de classe cavaleiresca orgulhosa de sua conduta e valores marciais, e desdenhosa para com outros segmentos não armados da sociedade – os clérigos e os camponeses.

Os cavaleiros nasceram da necessidade, entre os nobres e a Igreja, de defender os domínios contra os inimigos ou contra as pilhagens e roubos nas estradas. Dessa forma, a cavalaria foi um exército coercitivo. Os cavaleiros, ou milites – para utilizar o vocábulo latino com o qual eram denominados – defendiam os interesses daqueles de quem dependiam; ou seja, dos senhores que os mantinham. Os cavaleiros eram encarregados de cobrar as taxas que aqueles senhores impunham aos camponeses. Assim, como nos cavaleiros predominava, em suas origens, o espírito guerreiro, nos primeiros relatos arturianos se dá maior ênfase ao valor militar, pois os domínios eclesiásticos também tinham que satisfazer tais pagamentos, embora, posteriormente, tenha havido o desvio do apetite de combate dos milites para objetivos mais acordes com o espírito cristão: a luta contra as injustiças e a luta contra os infiéis. Dessa forma, pouco a pouco a Igreja aceitou o uso da violência, até tal ponto que dela saíram célebres narradores arturianos, como é o caso de Robert Boron, no final do século XII; a mesma Igreja proclamou a Primeira Cruzada contra os inimigos da fé cristã.

Dentro dessa estrutura feudal, os cavaleiros mantinham um feudo que um senhor lhes havia concedido, em troca de render-lhe homenagem e prestar-lhe serviço com as armas. Por sua vez, esse senhor podia ser vassalo de outro senhor mais poderoso ou o cavaleiro ser servido por outros cavaleiros de categoria inferior. Com o passar do tempo, foram muitos os milites, às vezes de baixa estratificação social, que queriam converter-se em cavaleiros, motivo pelo qual foi imposta uma prova seletiva que acabou por tomar a forma de um rito de iniciação, abençoado pela Igreja, chamado respaldo ou palmada. Como o nome indica, o rito consistia em um golpe solene dado no principiante por seu padrinho ou cavaleiro que o havia instruído o introduzido na Cavalaria. O prestígio que adquiriu a citada cerimônia, e também o caráter sagrado que a Igreja conferiu-lhe, provocou que muitos nobres de nascimento fizessem-se armar cavaleiros. Com o tempo, até o século XIII, Nobreza e Cavalaria acabaram confundindo-se, embora em geral os nobres fossem os responsáveis em manter a paz devido a sua posição de autoridade real e, às vezes, a um especial carisma baseado em sua descendência de heróis ou santos, enquanto que os cavaleiros foram seus auxiliares, sem uma linhagem distinta e com pouca ou nenhuma terra.

A Cavalaria não foi somente uma vestimenta ou uma mera norma de conduta para um pequeno grupo social, mas assumiu uma grande transformação medieval cujo eco ressoou múltiplas vezes na História Universal. Reflexo disso foi a chamada literatura cavaleiresca que exaltou a figura de um cavaleiro ideal como vemos no “Livro de Lancelot do Lago”, pertencente ao ciclo da “Vulgata”5:

“No princípio, não havia homem por nascimento melhor que os demais, pois descendiam de um mesmo pai e mãe. Mas quando a inveja e a cobiça apoderaram-se do mundo e o poder se impôs sobre o direito, certos homens foram indicados como garantidores e defensores dos pobres e dos humildes.”

Em definitivo, o auge da Cavalaria teve lugar na França até os séculos XII ou XIII, na mesma época dos relatos arturianos, mas se desenvolveu e tomou forma em um contexto europeu. Nos primeiros relatos – na “Canção de Rolando”, por exemplo – a Cavalaria ou Cavalheirismo identifica-se com a ação valorosa no campo de batalha. Sem dúvida, a partir do século XII é entendida como um código social, moral e religioso de conduta cavaleiresca, exaltando as virtudes de coragem, honra e serviço.

 

Visão crítica da Cavalaria

Para alguns estudiosos da Idade Média, a Cavalaria é, sem dúvida, somente um sistema de formas, palavras e cerimônias para que as pessoas de nobre origem pudessem suavizar a crueldade da vida, adornando suas atividades com o brilho do ouropel tomado de uma novela. É uma fuga para o mundo dos sonhos e das fantasias ante a desesperada realidade e dificuldade que implicam realizar uma melhora da sociedade. Sobre a forma cavaleiresca da vida gravitavam demasiados ideais de beleza, virtude e utilidade. Considerando-a com extremo realismo, a Cavalaria resulta ser algo perfeitamente inútil e falso, uma comédia deliberada, um anacronismo ridículo: posto que a realidade seja áspera, dura e cruel, se a submete ao belo sonho do Ideal Cavaleiresco e edifica-se sobre ele o jogo da vida.

É possível aceitar essas críticas ao Ideal Cavaleiresco no final da Idade Média, séculos XV e XVI, pois todos os ideais que não foram renovados e nem vividos em sua essência degeneraram e chegaram à decadência e ao anacronismo. Não serve de nada recordar com nostalgia uma Idade de Ouro, uma Arcádia próspera e feliz; não serve de nada, como no século XX, realizar pseudotorneios cavaleirescos ou cortes arturianas como se fossem um esporte ou uma distração, imitando a forma exterior, mas perdendo sua essência. Somente resgatando e vivendo seus princípios éticos poderemos apreciar os valores positivos da Idade Média e, neste caso, das Ordens de Cavalaria.

Ao final da Idade Média, surgem as primeiras queixas contra a instituição da Cavalaria. Não se critica a pilhagem da guerra, por exemplo, mas o abandono da audácia, da disciplina e das tradições dos primeiros tempos. Critica-se o relaxamento dos costumes dos nobres, as extravagâncias do seu modo de vida, sua arrogância e vanglória, seu amor ao luxo e à ostentação e sua incessante busca pelo dinheiro para manter as grandes e contínuas perdas. A novela cavaleiresca não foi alheia a este sentimento popular, refletindo no falso cavaleiro, o cavaleiro vilão ou o cavaleiro negro, essa perda de valores. É nessa época que escrevem Malory ou Cervantes. Tanto a “Morte de Artur” como o “Dom Quixote” são não somente a crítica aos modos de vida e aos ideais de tempos passados, mas também um ressentimento amargo pelo que podia ser e se perdeu, por esses idealistas de identidade própria para além dos livros, como Arturo ou Alonso Quijano6.

 

O Final da Cavalaria

No princípio do século XVI, o domínio militar dos soldados a cavalo foi declinando devido aos avanços das táticas de infantaria. Com a chegada do arco, da lança antiga, da alabarda e do canhão, os cavaleiros perderam seu papel como guerreiros de elite. À medida que isso acontecia, pôs-se mais ênfase nas prerrogativas sociais e no comportamento cavaleiresco. A pompa se fez mais ostentosa, a heráldica mais intrincada. Proliferaram os torneios elaborados e as novas Ordens de Cavalaria.

O Ideal Cavaleiresco persiste enquanto há algo contra o qual se pode combater. Quando se alcança a paz, os que haviam se exercitado nas guerras e nos combates não sabem manter-se inativos, provocando disputas que antes eles mesmos haviam sufocado. A paz e a tranquilidade conduzem os cavaleiros à preguiça, como é muito bem descrito na novela de Chrétien de Troyes, “Érec e Énide”.

O Rei Artur e o Graal na Ordem de Cavalaria

Vimos como nessa época difícil, ou seja, nessa idade de ferro, nasce uma nova classe social, a dos guerreiros, herdeira das tradições germano-célticas, com reminiscências romanas, embora fosse principalmente o elemento cristão o que mais claramente se refletia em seu exterior.

Com os cavaleiros nasce também uma nova ética, a cavaleiresca, transformando o homem e a sociedade, inclusive em seu aspecto econômico – e não ao contrário, como normalmente tende-se a pensar. Graças a essa nova classe social, surgem as classes burguesa e mercantil, que são descritas nos relatos arturianos como antagonistas à dos cavaleiros. Essas impulsionam novas necessidades econômicas, maior segurança nas comunicações e agrupamentos nas cidades, que são o berço de burgueses e mercadores. Mas, para os cavaleiros, são mais importantes seus modelos de valor e cortesia, suas metas e anseios, dentre os quais os mais característicos da Idade Média são o Rei Artur e seus Cavaleiros da Távola Redonda, como modelo a imitar, e o Graal, como meta ou objetivo a perseguir.

Notas:

  1. O termo “pagão”, em Latim, significa “habitante do campo”, pois recordemos que foi no campo que, durante séculos, subsistiram essas religiões não cristãs.
  2. Este tema pode ser ampliado na obra de Norman Cohn, En Pos del Milenio, cap. I.
  3. Eustache Deschamps (ca. 1346-ca. 1406) foi um poeta francês que trabalhou a serviço do Duque de Orleans. Com os reis Carlos V e Carlos VI ocupou cargos públicos, chegando a ser em 1367 mensageiro real ou chevaucheur, percorrendo assim toda a Europa, que posteriormente retratou com detalhes muito realistas.
  4. Galberto de Brujas, “História do Assassinato de Carlos, o Bom”, citação extraída de G. Duby, Europa na Idade Média, pág. 30.
  5. O Ciclo do Pseudo-Boron, também denominado Ciclo da Pós-Vulgata, é um conjunto de textos literários medievais sobre as lendas arturianas, escrito originalmente em francês entre os anos de 1230 e 1240. (Nota do revisor)
  6. Alonso Quijano é o nome de Dom Quixote. (Nota do revisor)

Juan Carlos del Río

Autor

Revista Esfinge