Escrito por Lola Fernández

A adoração à Mãe Terra acompanha a humanidade desde o começo dos tempos. Seu vínculo com ela, para agradecer, para pedir,  para se maravilhar ante o mistério da existência, para sentir o sagrado de sua natureza, é parte de sua história.

Tanto na Europa como em outras partes do mundo, encontraram-se muitos restos do Paleolítico que atestam isso. Mas, possivelmente, desde muito antes, desde que existem, os seres humanos se sentiram ligados de modo indissolúvel a ela, filhos de um todo maior que lhes dava sustento, abrigo e desafios. Inúmeras deusas nos falam dessa relação através dos milênios. Desde Ishtar (Mesopotâmia), Gaia, Afrodite e Ártemis (Grécia), a Pachamama (Peru), Coatlicue (México), Parvati (Índia) e Freya (Escandinávia). E nos remetem a Deusas Mães ainda mais antigas, cujos nomes se perderam na noite dos tempos.

O que aconteceu com essa relação hoje? Esse vínculo rompeu-se  irremediavelmente?

Lamentavelmente, o desapego pela Mãe Terra parece ser uma tendência que vem atuando há vários séculos. Filósofos como Max Weber ou Mircea Eliade trataram sobre ele amplamente em seus livros e deram o alerta. Dessacralizamos o mundo, que passou a não ter alma, nem espírito, nem propósito.

Como então reverter a situação atual se, além da realidade física que vemos, não há nada com que se conectar, apenas matéria física e cego acaso?

No entanto, é urgente restabelecer essa conexão com a Mãe Terra, não porque ela necessite: a Terra já sofreu cinco extinções massivas ao longo de sua história, a dos dinossauros foi apenas a última; no entanto, saiu delas, se é possível, mais forte e mais vigorosa do que antes. Somos nós que precisamos disso desesperadamente.

Desde que se redigiu em 1978 a Constituição espanhola, que em seu artigo 45 declarava que…

  • Todos têm o direito de desfrutar de um meio ambiente adequado ao desenvolvimento da pessoa, assim como o dever de o conservar.
  • Os poderes públicos velarão pela utilização racional de todos os recursos naturais, com o fim de proteger e melhorar a qualidade de vida e defender e restaurar o meio ambiente, com base na indispensável solidariedade coletiva.
  1. Para aqueles que violarem o disposto na seção anterior serão estabelecidas sanções penais nos termos que a lei fixar ou, se for o caso, administrativas, assim como a obrigação de reparar o dano causado.

…promulgaram-se umas 20 leis e mais decretos, sem contar com os das regiões autônomas, que desenvolvem essas intenções: a Lei 21 de 2013 da Avaliação Ambiental, a Lei 30 de 2014 de Parques Nacionais… Assim até vinte… Nelas se especificam claramente as infrações ambientais, bem como as sanções a que darão origem.

Desse modo, nos artigos 80 e 81, da Lei 42 de 2007 do Patrimônio Natural e da Biodiversidade, e ao longo de 25 seções extensas, enumera-se cada uma delas, assim como as sanções correspondentes:

“Serão consideradas infrações administrativas:

  • A utilização de produtos químicos ou substâncias biológicas, a descarga, tanto líquida como sólida, o derramamento de resíduos, bem como o depósito de elementos sólidos para aterros, que alterem as condições dos ecossistemas com prejuízo dos valores neles contidos. Da mesma forma, a prática dos atos mencionados será considerada infração mesmo quando nenhum dano tenha sido causado, desde que tenha havido um sério risco de alteração das condições dos ecossistemas…”.

“As infrações tipificadas no artigo anterior serão sancionadas com as seguintes multas:

a) Infrações leves, com multa de 100 a 3.000 euros.

b) Infrações graves, com multa de 3.001 a 200.000 euros.

c) Infrações muito graves, multas de 200.001 a 2.000.000 euros”.

E para que não restem dúvidas, no artigo 3º da Lei 22 de 2011 sobre Resíduos e Solos Contaminados, existe uma seção sobre “Definições” na qual nos é explicado cuidadosamente o que são resíduos e os tipos de resíduos existentes: “Para os efeitos desta Lei, entende-se por: a) Resíduos: qualquer substância ou objeto de que o seu possuidor se desfaça ou tenha a intenção ou obrigação de se desfazer. b) Resíduos domésticos: resíduos gerados nas residências como resultado das atividades domésticas…”.

Por outro lado, o artigo 11 da mesma lei explica quem deve se responsabilizar pelos resíduos que gera: “De acordo com o princípio de que quem contamina paga, os custos relativos à gestão de resíduos terão de ser suportados pelo produtor inicial dos resíduos…”.

Inclusive, nos artigos 325 a 330 do Código Penal espanhol, estão previstas como delito as infrações mais graves e são punidas com pena de dois a cinco anos de prisão.

Passear e não sujar

Saio a caminhar a cada manhã aos pés da Sierra Nevada; ainda é um lugar belo, como tantos outros no mundo. Os pinhais, a neve ao longe, o céu, os pássaros e as brincadeiras dos esquilos perseguindo uns aos outros dão vida a todos os que, como eu, buscam um lugar de relaxamento e sossego. No entanto, apesar de todas essas leis, não há um dia em que eu não tropece nas coisas mais impensáveis ​​em meio a esse lugar idílico: uma peça de motor de carro que alguém, não posso imaginar quem, abandonou entre as árvores, o tubo catódico de uma velha televisão mostrando suas pontas afiadas entre as agulhas dos pinheiros, além de fraldas, deixadas para trás como resquícios de algum passeio em família e outros dejetos inomináveis, que já são habituais; e, claro, os conhecidos plásticos de todos os tipos que, transformados, com o tempo, em minúsculas partículas, já fazem parte da terra e da nossa dieta diária como tantos outros venenos.

Sem dúvida as leis são necessárias e melhoráveis, na Espanha e em muitos países, se não em todos. E as sanções, ainda inevitáveis.

Mas… não são leis o que nos falta, nem o que mais necessitamos difundir.

Apesar de todas elas, os ataques ao meio ambiente em nosso país não pararam de aumentar nos últimos dez anos, de acordo com o SEO/Bird life. E as multas a pagar ficam cada dia mais rentáveis ​​e não estão cumprindo seu objetivo.

A verdadeira solução está em outro lugar… E é vital que a encontremos.

Estamos pagando um preço já tão alto, na forma de extinção de espécies, poluição, de perda de uma beleza que é tão necessária à vida quanto o alimento… que a solução e a mudança não podem demorar muito, porque a cada dia que passa nos resta menos de toda essa riqueza e complexidade com que começamos nossa história.

É verdade que acabamos no meio de um sistema econômico herdado, que devora a natureza para produzir dinheiro a qualquer preço, para produzir bens de consumo às vezes completamente desnecessários; produzir “bem-estar” e “conforto”, custe o que custar. E que isso, é claro, não resolveu a questão dos resíduos. Continuamos a despejá-los em qualquer lugar, alegremente e sem consciência, quer se trate de países inteiros, empresas ou indivíduos. Porque é mais confortável, porque o espaço onde os jogamos “não é nosso” ou porque o tema dos resíduos não é tão prioritário como a ganância. E em nome do conforto ou dos interesses econômicos de empresas e indivíduos, estamos renunciando a um bem mais autêntico e profundo, a conexão com a Terra, o respeito e o amor ao nosso planeta, o deslumbramento com a beleza de um lugar limpo, em que a natureza pintou cores e formas que são pura arte.

Mas… também é verdade que o “sistema” é formado por todos nós. Parece que colocar toda a responsabilidade sobre os ombros de um “sistema” abstrato externo e desalmado com o qual não temos nada a ver nos tranquiliza e nos transforma em seres inocentes que, simplesmente, não podem fazer nada. Mas não é assim. Todos somos, de alguma forma, responsáveis ​​pelo que acontece. Pode ser que alguns mais e outros menos, mas todos nós temos alguma responsabilidade e alguma capacidade de ação à qual nunca devemos renunciar.

Também é verdade que não pode haver produtores que continuem com seu labor depredatório se não houver consumidores que o ratifiquem a cada compra que fazem. Um velho e querido professor de geografia econômica já dizia isso há muitos anos: “Os consumidores têm um poder imenso, o de não comprar, mas ainda não o descobriram”.

Receio que hoje esteja apenas começando a ser descoberto.

Não podemos mais voltar no tempo, é verdade, nem nos transformarmos naqueles primeiros humanos que, como crianças inocentes, sentiam-se parte de um ambiente mágico e sagrado com o qual estavam unidos, com o qual podiam se comunicar, que lhes falava por meio de mil sinais, dos pássaros, do sol, das tempestades… que às vezes os castigava, mas também aceitava suas oferendas de perdão ou agradecimento… Porque a vida, como o ser humano, avança.

Mas podemos nos negar a perder toda essa beleza, essa conexão com nosso planeta, que dá um sentido mais profundo à nossa vida e que pode nos ajudar a sair de onde estamos.

E podemos abrir nossa mente a toda informação que chega todos os dias por meio de múltiplos canais, em vez de fechar os olhos ou olhar para outro lado, e nos tornarmos conscientes de que oito milhões de toneladas de lixo vão parar todos os anos nos mares e oceanos e estão se acumulando em imensas ilhas artificiais de plástico. De que muitas cidades no mundo têm níveis tão altos de poluição atmosférica que afetam seus cidadãos tanto quanto fumar cem cigarros por dia. Ou de que um milhão de espécies, animais e vegetais, estão em perigo de extinção, de acordo com o relatório da ONU de 2019.

Também podemos questionar se a renda per capita ou o produto interno bruto são indicadores de felicidade, ou mesmo de verdadeiro bem-estar. Precisamos de meios materiais mínimos, é verdade, ninguém discute; porém, bem repartidos a nível mundial e não como prato único. Há muito mais na vida.

Mas, acima de tudo, podemos abrir nosso coração e permitir que isso nos doa profundamente, como se estivesse acontecendo em nossa própria casa, onde nunca permitiríamos sujeira no solo, água ou ar viciados, ou qualquer tipo de ameaça àqueles que a habitam, incluindo animais de estimação, se houver. Já que a Terra é na verdade “nosso verdadeiro lar”. E só quando nos sentirmos assim, teremos o desejo natural de fazer mil pequenos gestos diários: reciclar nosso lixo, usar pontos limpos mesmo que ainda sejam poucos ou distantes, apagar uma luz, andar um pouco mais em vez de pegar o carro, ou não comprar o que realmente não precisamos… Os frios dados estatísticos, as leis, raramente nos impactam o suficiente. O verdadeiro poder para mudar condutas está no coração. Talvez então, como Ken Wilber e outros dizem, tenhamos começado a elevar nosso “nível de consciência”. E isso não se pode fazer de costas para o sentimento. Nossa consciência é um todo, não um arquivo com gavetas.

Resta esperança

Podemos, por último, recusar-nos a perder a esperança. Ela nos move a continuar. E aqui e ali podemos ver sinais de que algo está mudando.

É esperançoso ver países como o Butão que se comprometeram por lei a preservar a grande maioria de suas florestas e espaços naturais e que preferem falar de “felicidade interna bruta” do que de “produto interno bruto”, manifestando assim uma nova forma de pensar, completamente necessária para parar um capitalismo selvagem que está destruindo a Terra. Os avanços materiais não são os únicos  que podemos buscar, que são muito pouco se não forem equilibrados e complementados pelos avanços espirituais.

É esperançoso saber que em lugares como a Alemanha — onde passei uma temporada, há mais de trinta anos, e onde mesmo naquela época vi e aprendi coisas que no lugar onde moro seria uma utopia ainda hoje —, reciclar já é parte normal e assumida da vida cidadã, o vidro é reciclado pela cor, o papel é usado e reutilizado até a última fibra porque é feito de árvores, há cidades históricas, cidades universitárias… onde a circulação de veículos particulares foi quase totalmente substituída por outros meios de transporte mais práticos e menos poluentes. Encontrar resíduos despejados em qualquer lugar não é uma tarefa tão fácil. E os últimos espaços naturais, como a Floresta Negra, que dão ao sul do país a aparência de um cartão postal, são cuidados como algo muito valioso.

É esperançoso conhecer a enorme tarefa que grupos como o GEA têm realizado ao longo de todos os anos em que atua. E dá-me esperança saber que aos poucos vão surgindo outros novos. Recentemente, em um de meus passeios matinais, encontrei um grupo de pessoas que estava plantando árvores em seu tempo livre. “Refloresta” chama-se a associação a nível nacional. Conversando com eles descobri que alguns também pertenciam a outra associação, Zero Waste, que se dedica à coleta de lixo em espaços que eles começaram a chamar de “lixeireza”. Seu lema é mais uma esperança: “Reduzir (lixo), reutilizar, reciclar”. Em todos eles, o vínculo com a Mãe Terra segue vivo. Tomara que seu exemplo e seu entusiasmo sejam contagiantes e acabem se espalhando por todos os cantos do nosso planeta, que nos dêem a coragem e a força para trilhar novos caminhos de respeito, cuidado e amor por este pequeno ponto azul perdido na imensidão do universo, onde está tudo o que conhecemos e tudo o que amamos, chamado Terra.

Autor

Revista Esfinge